sábado, 9 de julho de 2016

Caixa de papelão com assento pra dois



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"Às vezes na vida temos de saber lutar não só sem medo, mas também sem esperança".
'Anjo Torto', um grito de amor contra as misérias do cotidiano.
'Anjo Torto', um grito de amor contra as misérias do cotidiano.

Por Celso Adolfo*

Minha história teve final melhor do que a de ‘O sonho partido de um menino vadio’, de María Martín, do El País. Embora corriqueiras, não nos acostumemos com o que as produzem.

Conheci uma família nas calçadas da Av. Afonso Pena, em Belo Horizonte. Eram meus vizinhos, pois eu morava ali, no Ed. Panorama.

Assistindo àquilo diariamente, nos anos 1980, eu fazia a minha reportagem sobre eles: uma mãe cuidando dos meninos Cleidson, Alessandro, Alessandro Rodrigues, Carlos e Fabiano, primos e irmãos entre si. Ela revezava os muito pequenos numa caixa de papelão com assento para dois. A avenida via aquilo assim: vadios, desempregados, pretos, pivetes perigosos, a mãe se aproveitando dos menores.

De tão próxima a presença deles, não me escapariam os seus gestos, duvidosos ou inocentes, pedintes, necessitados. Não os tirava da mira, descendo e subindo sem nunca lhes dar dinheiro, roupa velha, sobra de pizza ou qualquer porcaria que se dá nestas ocasiões em que a piedade põe a gente contra a parede de chapisco. Dei nada, nunca.

Chega o fim da década e eu parto para gravar Anjo Torto. Show pra cá e pra lá, juntei o dinheiro e fui orgulhosamente para o primeiro CD independente do Brasil. O samba que dava nome ao disco era uma tradução do eu que via na minha porta. Entretanto, algo destoava: a “família” não dava pinta de ser o que se imagina sempre. E aí arrisquei isso: chamei dois dos meninos, com uns seis ou sete anos cada um, e perguntei: vocês ganham quanto aqui na avenida? Às vezes a gente ganha cinquenta (cruzados novos) num dia.

Diante dos anjos tortos, pobres, pretos de rua, me intrigava que nunca demonstrassem má índole. Arrisquei isso: vocês topam tirar uma fotos para um disco meu? Toparam. Fiz minhas continhas e paguei duzentos (cruzados novos) para eles, com o compromisso de que levassem o dinheiro para a mãe, que os aguardava em casa, na calçada. Levaram e eu confirmei. Dias depois levei dois dos mais novos para o apartamento 1308 onde eu morava. Aquela coisa estranha, mudar o mundo fazendo o mínimo que me coubesse. E nunca vi olhos tão arregalados por isso: uma sala com sofá, mesa, quatro cadeiras, quadros nas paredes, três violões por ali, cozinha com geladeira e um quarto com televisão. Você tem televisão no quarto? Que cena, meu deus, ver aquelas quatro perninhas pobres e sujas e pretas e sem sapatos, num balanço inseguro, olhos grudados numa televisão, e de dia! Passou pela minha cabeça tomar conta desses dois. Dei uns passos nessa direção e me vi sem condições.

Corria 1989 e gravei o disco, que saiu em LP e em CD, lançados em 1990, com capa de Marcos Coelho Benjamin e design de Guilherme Seara. Lá estamos nós, os meninos e eu, fotografados na esquina de São João Evangelista com Santo Antônio do Monte, em BH. Essa locação foi escolhida porque a família morava ali perto, enfiando-se no beco e sumindo no Morro do Papagaio.

A família das calçadas do Ed. Panorama não se perdeu. Para além da pobreza e da busca lenta e desesperada, alguma ponta de honradez e dignidade se via na mãe deles, e é isso que salvou aquela turma da tragédia habitual: se é preto, pobre e do morro, tá ferrado.

Pois, em 2003 eu fui abordado, na Savassi, no McDonald Square, local em que combinei encontrar um amigo dinamarquês. Quem me abordou foi Alessandro Rodrigo, e de terno da Cia do Terno, garboso, empregado de não me lembro que empresa. Ele disse que tinha o LP guardado, que os irmãos e primos estavam na batalha, e que a mãe estava bem.

Em 2013, outra abordagem, na Rua Miradouro esquina com São João da Ponte, perto de onde moro hoje. Um caminhão (que transporta concreto) manobra e o motorista de sorriso brilhante abre a porta e me chama: Ei, Celso Adolfo, sou eu, Alessandro, tá lembrado das fotos? Sou eu. Tenho aquele disco até hoje! Conversamos e foi nítida a nossa emoção.

O terno e o sorriso de dente de ouro. Por que aquela meninada não se perdeu? Tenho certeza disso: pela ponta de honradez e dignidade que se via na mãe deles, pobre, preta, na rua, só na avenida, à espera de uma liga que lhes possibilitasse uma saída qualquer a partir de ser pedinte.

É Julho de 2016 e estou sempre aguardando nova abordagem. Viro a cabeça a cada terno modesto, a cada caminhão que passa a caminho de prédio em construção. Se os vir novamente, vou esticar a conversa. Vou perguntar tudo sobre a vida deles. Vou lhes dar meus discos recentes (ou o streaming, pois o tempo deles é o do Spotfy, da Apple Music).

Assistiremos alguma coisa na televisão, na minha casa. Ou na deles, pois, desta vez, sinto que posso me oferecer.

Ouça ‘Nós Dois’, uma das canções do CD Anjo Torto, de Celso Adolfo:

*Celso Adolfo é músico e compositor. A frase de abertura é de Sandro Pertini, ex-presidente da Itália. Foto: Cristiano Quintino.

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