domtotal.com
Os passos pastorais de Francisco, que despertam atenção, são fruto de toda uma vida eclesial.
Por Francisco das Chagas de Albuquerque*
O Papa Francisco, por suas atitudes, gestos e palavras conclama a Igreja à radicalidade do Evangelho, a integrar-se em um processo de reforma e, à sociedade, lança um apelo ao diálogo tendo em vista a situação da “Mãe Terra”. “Em minha exortação Evangelii Gaudium [EG], escrevi aos membros da Igreja em ordem a mobilizar um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica tento especialmente entrar em diálogo com todos acerca de nossa casa comum” (LS 3). A tradição eclesial latino-americana, sua teologia e experiência espiritual e, sobretudo, o que se tem vivido a partir da conferência de Medellín (1968), influenciam a orientação pastoral do Bispo de Roma. A opção pelos pobres permeia seu discurso e sua prática. “Somos chamados a descobrir Cristo neles, a emprestar-lhes nossa voz em suas causas, mas também a ser seus amigos, escutá-los, interpretá-los e a recolher a misteriosa sabedoria que Deus quer comunicar-nos através deles” (EG 198; cf. 197-201).
O programa do pontificado
No escrito programático de seu pontificado, a exortação apostólica EG, o Papa Francisco, expressa claramente o desejo por uma Igreja missionária que esteja comprometida com a libertação integral de “todos os abandonados da sociedade” (EG 186; cf. 186-192). Essa proposta remonta à inspiração do Papa João XXIII, expressa no discurso de abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II em 11 de outubro de 1962: “A Igreja é a Igreja de todos, mas, hoje mais do que nunca, é a Igreja dos pobres”. Os Padres conciliares, no entanto, não assumiram a questão dos pobres e da pobreza como um dos eixos principais da reflexão e decisões conciliares. Porém, sabe-se que um grupo de bispos, formado principalmente por latino-americanos, celebrou um compromisso de viverem, pessoalmente e como pastores na e da Igreja, em pobreza radical. Ele firmou o chamado “pacto das catacumbas”, que teve lugar nas catacumbas de Santa Domitila. O significado desse simbólico gesto sacramental teve relevantes consequências não só na vida concreta dos Padres conciliares que o firmaram, mas também de suas Igrejas. Esse pacto segue repercutindo em lugares do ambiente eclesial.
O espírito evangélico e de conversão que animou esse compromisso se expressou na recepção do concílio pela Igreja latino-americana na conferência de Medellín - Colômbia (1968). Nessa conferência, a Igreja acolheu a reflexão teológica libertadora, que então estava se desenvolvendo neste continente. A tradição eclesial de corte popular e libertador que se desenvolve deste então, passando por Puebla (com algumas ressalvas a Santo Domingo, 1992) até Aparecida tem assumido a “opção pelos pobres”. Ao longo dessas cinco décadas, a Teologia da Libertação tem contribuído para a reflexão sobre a ação evangelizadora.
A experiência pastoral de Bergoglio
O cardeal Bergoglio, que exerceu seu ministério nesse contexto, eleito Bispo de Roma, levou para o exercício do ministério petrino a riqueza e a pobreza da experiência vivida em sua Igreja particular (Buenos Aires), colocando em prática as definições do magistério da Igreja latino-americana e caribenha. Como a toda visão eclesial e qualquer orientação pastoral está subjacente uma determinada teologia, à orientação pastoral de Francisco subjaz a teologia latino-americana da libertação. Ou, mais exatamente, a versão argentina dessa teologia, a Teologia Popular, que utiliza como mediações as análises sociocultural e sociohistórica. Tal programa constitui-se como autêntica teologia da libertação, pois se encarna em um “povo particular”, assumindo suas demandas e manifestações.
Na conferência de Aparecida (2007), o então cardeal Jorge Bergoglio, que foi um dos responsáveis pela elaboração do documento final (DAp), identifica influências da Teologia do Povo. Uma delas, a colaboração no tocante ao discernimento da tarefa do seguidor de Cristo hoje. “Os discípulos missionários de Jesus Cristo temos a tarefa prioritária de dar testemunho do amor a Deus e ao próximo com obras concretas. Dizia Santo Alberto Hurtado: ‘Em nossas obras, nosso povo sabe que compreendemos sua dor’” (DAp 386). Outra, a relevância da “piedade popular” na evangelização, como experiência da Igreja na América Latina. “Em nosso amado continente, onde grande quantidade de cristãos expressam sua fé através da piedade popular, os Bispos a chamam também ‘espiritualidade popular’ ou ‘mística popular’” (EG 124; cf. DAp 262-264).
A universalização da experiência eclesial latino-americana
A orientação pastoral de Aparecida definida no tema geral, “Discípulos Missionários”, dá o tom missionário que o Papa imprime em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium. “Constituamos em todas as regiões da terra em um ‘estado permanente de missão’ [DAp 551]” (EG 25). Em seu ministério como pastor da Igreja de Roma, Francisco eleva ao nível universal sua aprendizagem como membro da Igreja latino-americana. Propõe, com as devidas ponderações, tendo em vista as diferenças culturais, eclesiais e históricas, o caminho de uma Igreja pobre e voltada para fora de si mesma e a serviço de toda a humanidade. Com isso apresenta também como caminho de reflexão teológico-pastoral, o aprofundamento da fé a partir da prática de solidariedade com o ser humano concreto e com a preservação da Terra. Assim se expressa Francisco com força profética: “Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que vai nos suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto põe em causa o significado de nossa passagem por esta terra” (LS 160).
Portanto, a articulação da experiência eclesial que o Cardeal Bergoglio viveu na América Latina e as determinações pastorais do Papa Francisco, evidenciam que seu pontificado apresenta, em grandes linhas, influências da Igreja latino-americana comprometida com os pobres e sua libertação integral. Consequentemente, carrega traços da reflexão teológica da libertação formulada a partir da práxis eclesial de nosso contexto sócio-histórico. O Papa, por seu próprio testemunho, convoca toda a Igreja a ser missionária, misericordiosa e servidora da humanidade, começando pelo cuidado destemido e generoso com os prediletos do Pai (cf. Mt 25,31-46).
Leia também:
O Papa do fim do mundo
Mil dias com Francisco I
Mil dias com Francisco II
Diretor do Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, no uso de suas atribuições e seguindo o estabelecido no artigo 40 parágrafo únicos do Regimento da FAJE e no art. 6 do Regulamento do Departamento de Teologia da FAJE, nomeia para o cargo de Coordenador do Curso de Graduação em Teologia do mesmo Departamento, com mandato de três anos, o Prof. Dr. Francisco das Chagas de Albuquerque.
Nenhum comentário:
Postar um comentário