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A conduta definida como estupro deixou de ser unicamente a conjunção carnal.
Normativamente, o não da vítima nunca teve tanto poder.
Por Eduarda Couto Pessoa Othero*
O estupro, em termos gerais, representa uma conduta altamente reprovada pela sociedade, sendo, inclusive, tratado como crime hediondo. Em razão da transformação social, a descrição de estupro sofreu alterações importantes e, durante 2016, o assunto ganhou novamente visibilidade em razão dos casos de “estupro coletivo” que estamparam os meios de comunicação.
A atual definição de estupro é delineada pelo artigo 213 do Código Penal (CP): “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena atribuída em razão dessa prática é de reclusão e varia entre seis e 10 anos.
De acordo com o §1º do artigo 213, caso a conduta resulte em lesão corporal de natureza grave ou aconteça contra vítima que possua idade entre quatorze e dezoito anos, a pena cominada é maior. A condenação passa a ser de oito a 12 anos de reclusão. Se resultar em morte, a pena é de 12 a 30 anos, nos termos do §2º do mesmo artigo.
A nova redação, dada pela Lei 12.015/2009, trouxe diferenças relevantes em relação à anterior e amplia o leque de condutas que são consideradas como estupro. O termo “mulher” era anteriormente atribuído à vítima e a alteração legal trouxe o uso da palavra “alguém”, acabando com a restrição que havia. Dessa forma, o legislador permitiu que se considere estupro a violência contra a dignidade sexual da pessoa de qualquer gênero.
Além disso, a conduta definida como estupro deixou de ser unicamente a “conjunção carnal” – considerado inicialmente apenas como introdução do pênis na vagina – e incluiu qualquer ato libidinoso efetuado através de constrangimento, violência ou grave ameaça. Portanto, a nova definição abrange atividades como sexo oral, sexo anal e outros atos que favoreçam o prazer sexual do autor, as quais eram tipificadas como “ato libidinoso”, previsto no já revogado artigo 214 do Código Penal.
Cabe ressaltar, também, a questão do estupro em relação ao casamento. Antes da Lei 11.106/2005, era possível que o estuprador tivesse sua punibilidade extinta caso se casasse com a vítima ou caso ela se casasse com terceiro e não tivesse interesse em prosseguir com o inquérito ou com a ação penal – artigo 107, incisos VII e VIII do CP. Esse posicionamento demonstra claramente que a norma defendia a reputação da mulher, não a liberdade ou a dignidade sexual das pessoas.
Além disso, a violência sexual havida entre os cônjuges foi desconsiderada como estupro durante décadas. Nascido no contexto de uma sociedade extremamente patriarcal e machista, onde a mulher era tratada como propriedade do pai ou do marido, o Código Penal, analisado também junto ao antigo Código Civil, e as decisões judiciais mais conservadoras desconsideravam a vontade da mulher nas relações sexuais.
Esse posicionamento é inadmissível à luz da Constituição de 1988, que estabelece a igualdade de gêneros. E, em 2006, a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, entrou em vigência, explicitando no artigo 7º, inciso III, que a violência sexual é um dos tipos de violência possíveis nas relações domésticas contra a mulher.
Portanto, não importa o gênero da vítima, se é cônjuge, desconhecida ou se é profissional que trabalha prestando serviços sexuais. Caso a prática da relação sexual ou de outro ato libidinoso seja forçada, estaremos diante de um caso de estupro.
Importante abordar também o estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal. Nos casos em que a vítima tiver menos que quatorze anos, sofrer de enfermidade ou deficiência mental, for incapaz de ter discernimento suficiente para o ato ou, de alguma forma, não conseguir oferecer resistência – por exemplo, quando estiver embriagada ou desmaiada – estaremos diante de situações de vulnerabilidade. Nesses casos, a violência é presumida e a situação da vítima assume grande peso na condenação pelo crime.
Ainda que haja críticas em relação ao assunto, percebe-se nas definições legais em vigência que o consentimento da vítima apresenta grande relevância e que, sendo ou estando ela incapaz de consentir ou deixando claro que não consente com a conduta, haverá a possibilidade de incidir no que a lei define como estupro.
Normativamente, o “não” da vítima nunca teve tanto poder. Resta, agora, torcer para que esse mesmo “não” seja considerado com seriedade nas relações sociais, evitando, assim, que as pessoas tenham sua dignidade sexual violada.
Leia também:
Há estupro contra homens e dentro do casamento
Paradigma atual do estupro: o homem como vítima
Análise crítica do estupro de vulnerável
REFERÊNCIAS:
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
_______, Decreto-lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940.
_______, Lei nº 11.106, de 04 de junho de 2005.
_______, Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006.
_______, Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009.
*Eduarda Couto Pessoa Othero é advogada, especializada em Ciências Penais e presidente da Comissão de Assuntos Carcerários da OAB-MG Subseção Nova Lima.
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