sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Literatura e Teologia

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Ambas se voltam para as questões fundantes que nos movem e comovem.
Ambas são testemunho ou documento cultural da experiência humana sob a face da Terra.
Ambas são testemunho ou documento cultural da experiência humana sob a face da Terra.

Por Cleide Maria de Oliveira*
As possibilidades de vínculo entre literatura e teologia surpreendem àquele que julga impossível esse diálogo. Não atoa, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são chamadas “religiões do livro”, ou seja, religiões que fundamentam sua confissão de fé, valores, dogmas e cosmovisão em um conjunto de livros considerados de inspiração divina, e por isto sagrados. Um fecundo diálogo entre Literatura e Teologia nasce da constatação de que a Bíblia, livro sagrado do cristianismo é, também, uma obra literária, e especialistas de ambas as áreas têm se interessado em explorar as consequências dessa afirmação. O teólogo alemão Karl-Joseph Kuschel cunhou o termo Teopoética para a especificidade desses estudos dialógicos entre literatura e teologia, sendo hoje um dos seus principais divulgadores na Europa e no Brasil. Em entrevista à revista IHU-online afirma que “Precisamos da literatura não como solução, mas como parceira no diálogo”. Outra possibilidade é explorada pelo professor de literatura e ex-jesuíta Jack Milles, que no romance Deus: uma biografia toma Deus como um grande personagem da cultura ocidental, narrando o enredo de Sua vida a partir de uma, no mínimo surpreendente, releitura da Bíblia como obra literária.

É possivel também falar de mútua influência: é inegável o caráter literário da Bíblia, no sentido de serem textos em que a beleza da forma é elemento fundamental (lembremos os livros sapienciais) e, da mesma forma, a Bíblia tem fornecido às artes e à literatura personagens, temas e motivos que se encontram presentes em inúmeras obras de grande valor estético. Tomemos como exemplo o livro Cântico dos cânticos, que emociona e encanta quando narra o encontro amoroso entre Amante e Amado (ou Deus e a Alma sedenta de sua presença, conforme interpretação alegórica dos padres da Igreja), e por isto mesmo tornou-se forte influencia na literatura mística, como em São João da Cruz, Santa Teresa de Avila e nas místicas beguinas Hadewijch de Antuérpia e Mechtild de Magdeburgo. Por outro lado, esse poema erótico-amoroso é também relido por autores brasileiros tão diversos quanto Castro Alves, Osvald de Andrade, Hilda Hilst e Manuel Bandeira.

Literatura e teologia têm ainda outro ponto de intercessão; ambas são testemunho ou documento cultural da experiência humana sob a face da Terra. Todas as civilizações possuem tanto algum tipo de manifestação religiosa quanto formas de expressão artística que nos falam de modos de ser, estar, se organizar e conviver de povos distantes de nós no tempo e no espaço, permitindo que conheçamos e entendamos mais sua cultura e sociedade.

Ambas se voltam para as questões fundantes que nos movem e comovem, e que se sintetizam nas perguntas “de onde”, “para onde”, “por que” e “para que”, questões que quando desenvolvidas abrangem a dificil (e às vezes dolorosa) construção das relações interpessoais e sociais; as alegrias, dores e desabores das paixões humanas; o possível significado da nossa existência; a dor de saber-nos finitos e demasiado humanos e, por isto mesmo, perplexos quanto ao nosso destino último; e tantas outras que há milênios alimentam nosso espanto.

Os poetas, sensíveis ao apelo do divino, desde muito defendem uma íntima relação entre poesia e sagrado, e são muitos os exemplos que podemos citar. Para a mineira Adélia Prado a poesia (literatura) é sempre sagrada, mesmo em escritores ateus: “O que me fada é a poesia. Alguém já chamou Deus por esse nome? Pois chamo eu que não sou hierática nem profética e temo descobrir a via alucinante: o modo poético de salvação” (Solte os cachorros).  De forma semelhante o poeta mexicano Octávio Paz considera que “Tudo nos leva a inserir o ato poético na zona do sagrado” (O arco e a lira). E Hilda Hilst, poeta reconhecida pela linguagem oscilante entre a mística e a profanação: “A minha literatura fala basicamente desse inefável o tempo todo. Mesmo a pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus” (Entrevista). Essa percepção é encontrada mesmo nos estudos de literatura, veja-se o que o crítico americano Jonathan Culler diz sobre o tema: “O sobejo da poesia inclui sua aspiração àquilo que, desde os tempos clássicos, os teóricos chamaram de ‘sublime’: uma relação que excede as possibilidades humanas de entender, que provoca medo ou paixão intensa, que oferece ao que fala o sentimento de algo para além do humano”. E, por fim, Heidegger, para quem o poeta seria uma espécie de profeta que nomeia o divino expondo-se “aos relâmpagos dos deuses” para que por meio da palavra poética o sagrado fale entre nós.

Essas são algumas das possíveis vias de diálogo interdisciplinar entre Literatura e Teologia, certamente não todas, mas o suficiente para garantir que este encontro não é nem modismo temporário nem infrutífero. Juntas, Literatura e Teologia estão aprendendo outras, maiores, perguntas. 

Leia também:

Teologia em diálogo: Literatura, lugar teológico

Bíblia: Palavra de Deus em linguagem humana

Deus na literatura: entre a voz e a letra

*Cleide Maria de Oliveira, Drª em Estudos de Literatura.

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