terça-feira, 16 de agosto de 2016

Paradigma atual do estupro: o homem como vítima

 domtotal.com
Apesar de ser mais raro, é perfeitamente possível que o homem seja estuprado.
A lei estendeu ao homem a potencial qualidade de vítima de estupro.
A lei estendeu ao homem a potencial qualidade de vítima de estupro.

Por Vítor Burgarelli*
O presente texto visa tratar do crime de estupro, abordando um lado pouco explorado do tema: quando um homem é vítima. Isso exige que tratemos do estupro para além de seu rótulo criminal, mas como um dado da realidade que a lei decidiu atribuir a proteção penal, tornando-o um grave crime. Portanto, tabus a parte, trataremos do sério assunto que é o estupro.

Ao se estudar o estupro enquanto dado da realidade, percebe-se que este se encontra intimamente ligado à ideia de dominação – até mais do que a de prazer – que poderia se dar entre os povos (assim como um exército que conquista o território inimigo e de modo muito simbólico “toma para si” as mulheres dos derrotados), ou mesmo entre indivíduos (como o pai de família que pretende violentamente reafirmar sua autoridade nos assuntos do lar).

Ao longo da história percebeu-se a prevalência de modos de organização social de matriz patriarcal por todo o dito “mundo civilizado”. Seja por acaso, seja por imposição recorrente, modos de organização centrados na figura do homem como autoridade (pública ou privada) acabaram por se tornar paradigma.

Em decorrência disto, a mulher seria relegada a um papel secundário na dinâmica social, submissa ao homem-autoridade e instrumental a seus objetivos e ideais.

A criação e solidificação desta cultura permitiu que se tratasse a mulher como ser incapaz de emitir vontade, inclusive quanto a sua dignidade sexual.

E em que consiste essa tal dignidade sexual? Podemos defini-la como os limites que a pessoa toma para si na condução de sua sexualidade. Como a sexualidade é um ideal que varia muito entre as pessoas, é praticamente impossível que se estabeleça abstratamente um conceito absoluto de dignidade sexual.

Veja-se, por exemplo, os atos de sadomasoquismo que são considerados perfeitamente normais perante a ótica de seus praticantes, mas vistos como absurdos por quem não integra esta subcultura. Isto porque há variações nos campos de dignidade sexual entre o primeiro grupo e o segundo, delimitados pelo consentimento que cada um está disposto a oferecer.

Consentimento é a palavra-chave. Sempre que o consentimento não for respeitado e a pessoa for forçada a praticar um ato de conotação sexual com outra, esta passa a ser reduzida a um mero instrumento do prazer alheio, ou ainda um instrumento de estabelecimento de autoridade. Ao se violar o consentimento, fere-se a dignidade da pessoa e deixa-se de reconhecer sua natureza humana.

Por este motivo o estupro é um fato penalmente relevante. É um fato considerado grave o suficiente para ser previsto como crime.

Até 2009, o estupro era um crime muito mais restrito, e de acordo com o antigo artigo 213 do Código Penal Brasileiro, este se concretizava mediante a obrigação de mulher à prática da penetração do pênis na vagina.

Com a lei 12.015 de 2009, houve extensão da conduta considerada estupro, passando a não mais delimitar que apenas a mulher seria vítima do crime, bem como que a prática de qualquer ato libidinoso seria meio hábil para sua consumação (quando o ato praticado passa a ser considerado crime).

Diante disto, possibilitou-se acrescentar ao âmbito da norma qualquer ato que negasse a dignidade sexual de qualquer pessoa, por qualquer pessoa. Os exemplos são fartos de meios em que uma pessoa pode desrespeitar os limites sexuais de outra, seja um homem em face de uma mulher, em face de outro homem, uma mulher em face de um homem, em face de outra mulher, bem como qualquer conflito estabelecido entre pessoas de gênero fluido.

Deste modo, apesar de serem raras as ocorrências, é perfeitamente possível que o homem seja submetido ao crime de estupro, além de todas as consequências e traumas possíveis de serem enfrentadas por quem tem sua dignidade sexual violada. Há a perda de confiança, a paranoia, eventuais lesões, e, pior de tudo, a sobrevitimização (seja por meio da perda de credibilidade dos relatos da pessoa, por ser vítima de chacota por parte das autoridades e das pessoas próximas, ou por ter sua situação explorada e exposta).

Uma estrutura social que se pretende igualitária deve reconhecer o consentimento como expressão essencial das relações sociais. Tais relações são estabelecidas entre seres humanos de uma mesma hierarquia de vontade, que jamais podem servir de objeto aos desejos e ideal de autoridade de outras.

A igualdade pressupõe, ainda, que ninguém busque se sobrepor ao outro de modo a prejudicá-lo e rebaixá-lo, como a pessoa que pratica um estupro geralmente pretende, de modo cruel e traumatizante. Deste modo, a lei penal foi protecionista ao estender ao homem a potencial qualidade de vítima do crime de estupro, além de proteger qualquer pessoa quanto à prática de atos libidinosos dos mais diversos.

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*Vítor Burgarelli é advogado e pós-graduando em Ciências Criminais.

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