sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Vocação: o específico da existência diante de Deus

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É importante revisitar o significado mais profundo da vocação comum a todos os cristãos.
Contemplar a maneira que Jesus descobriu e assumiu sua vocação pode ser profundamente fecunda.
Contemplar a maneira que Jesus descobriu e assumiu sua vocação pode ser profundamente fecunda.

Por Geraldo De Mori, SJ*
Já há algumas décadas a Igreja católica do Brasil dedica o mês de agosto à oração pelas vocações, respondendo assim ao apelo de Jesus: “pedi ao Senhor da messe que envie operários para a sua messe” (Mt 9,37-38). Para muitos fiéis católicos esse tipo de oração diz respeito apenas às vocações na Igreja que têm a ver com serviços realizados por padres, religiosas e religiosos. Apesar de se propor para cada fim de semana orações por algumas vocações específicas, como a dos ministros ordenados (1ª semana), a da vida matrimonial (2ª semana), a da vida religiosa (3ª semana), a dos leigos (4ª semana), esse tipo de perspectiva corre o risco de instrumentalizar o sentido mais profundo do termo vocação, que não concerne só aos serviços e carismas eclesiais, mas ao humano enquanto chamado a um tipo específico de existência diante de Deus. É sobre esse sentido mais profundo que o presente texto pretende refletir à luz da Palavra.

O Deus do Antigo e do Novo Testamento é fundamentalmente um Deus que age através de sua palavra e de seu Espírito. A palavra é constitutivamente lugar de relação, estando ao serviço da relação das relações no AT, a aliança, e no NT, a filiação. Assim, na criação, a palavra divina tem o poder de ordenar o espaço e o tempo, criando o lugar no qual o ser humano vive sua vocação de co-criador: “crescei, multiplicai-vos, enchei a terra, submetei-a [...] eu vos entrego todas as ervas que dão semente [...] todas as árvores frutíferas” (Gn 1,28-29), ou de guardião: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no parque do Éden, para que o guardasse e o cultivasse” (Gn 2,15). É através desta mesma palavra que Ele escolhe no meio das nações Abrão, que será o pai do povo da aliança: “O Senhor disse a Abrão: Sai de tua terra natal [...] para a terra que te mostrarei. Farei de ti um grande povo, te abençoarei, tornarei famoso teu nome, que servirá de bênção” (Gn 12,1-2). O mesmo Deus chama e envia Moisés para libertar seu povo tornado escravo no Egito e conduzi-lo à terra da promessa: “Moisés, Moisés! [..] Vi a opressão do meu povo no Egito, ouvi suas queixas contra os opressores, prestei atenção a seus sofrimentos [...] Agora, vai, pois te envio ao Faraó, para que tires do Egito o meu povo” (Ex 3,4. 7.10). Os juízes e os reis também eram escolhidos para manter o povo unido ao redor da aliança. Samuel, último juiz (1Sm 3,1-14), é quem unge Davi (1Sm 16,1-13). A vocação dos profetas era recordar aos reis e ao povo a infidelidade à aliança e a necessidade de voltar ao Senhor. Assim acontece com Elias (1Rs 17), Isaías (Is 6,1-8), Jeremias (Jr 1, 4-10), Ezequiel (Ez 2,1-10), Oseias (Os 1,2-3), Amós (Am 7,14-15) e todos os profetas enviados por Deus a Israel em sua história.

No Novo Testamento, Jesus, a partir da pregação de João, é batizado. Ouve então a voz do Pai, que no Espírito o confirma como o Filho predileto e querido (Mc 1,9-11; Mt 3, 13-17, Lc 3,21-22). Movido pelo mesmo Espírito ele passa pelas provas do tentador (Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13), e inicia seu ministério, que assume como dado pelo próprio Espírito (Lc 4,14-21). Chama, por sua vez, discípulos (Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11; Jo 1,35-51), aos quais envia como apóstolos (Mt 10; Mc 3,13-19; 6,7-12; Lc 9, 1-6; 10,1-12), para realizar o mesmo que ele faz. Após sua morte e ressurreição, os confirma na missão de anunciar seu evangelho a todos os povos, fazendo no meio deles discípulos (Mt 28 28,19-20; Mc 16,15-20). Movidos pelo Espírito (Lc 24,49; At 1,8; 2,1-4) os discípulos prosseguem a missão inaugurada por ele. Os Atos dos Apóstolos são uma excelente ilustração de como a dinâmica inaugurada por Jesus conduz a jovem Igreja, levando-a da Palestina ao coração do império romano.

A vocação tem então a ver com o coração da revelação bíblica no AT, a aliança, e no NT, ser filhos/filhas no Filho pelo Espírito. O termo vocação significa “chamado”. O grande chamado, no AT, é pertencer ao povo eleito, mantendo-se fiel à aliança, e no NT, é revestir-se da nova humanidade, trazida por Jesus, tornando-se filho/a como ele. O caminho da filiação passa pelo caminho do discipulado: só é possível tornar-se um novo Cristo na medida em que, pelo Espírito, alguém se reveste dos sentimentos, gestos e modo de ser de Jesus de Nazaré. É seguindo-O que se aprende a ser como Ele. Esse grande chamado (vocação) é a própria vida cristã, recebida pelos fiéis no batismo, o qual, segundo a compreensão da Igreja, os torna profetas, sacerdotes e reis. O Concílio Vaticano II, na Lumen Gentium, resgatou esta vocação comum de todo o povo cristão.

Portanto, sem ignorar o apelo de Jesus (“pedi ao Senhor da messe que envie operários para a messe”), é importante, talvez, revisitar o significado mais profundo da vocação comum a todos os cristãos/ãs neste tempo em que a Igreja do Brasil dedica à oração pelas vocações. Para isso, a contemplação da maneira como Jesus descobriu e assumiu sua vocação pode ser profundamente fecunda. Judeu por tradição, ele se deixou interpelar pela pregação de João, fazendo-se batizar por ele. No batismo, através do Espírito, faz a experiência de ser filho amado/predileto do Pai. Esta experiência não é pacífica, feita de ilusões. Os relatos dos evangelhos mostram que logo depois do batismo ele foi levado ao deserto, onde foi tentado. Dentre as tentações uma dizia respeito justamente à sua filiação (“se és filho”). Ao assumir sua vocação de ungido de Deus para “anunciar a boa nova aos pobres”, que são provavelmente os que mais podem ser tentados a não se sentirem filhos/as amados de Deus, Jesus mostra, por sua vida, que o “ser filho amado de Deus” é resultado de um combate, cuja vitória só é possível no Espírito, que na cruz o leva a perseverar até o fim na apelação de Deus como Abba, Pai. Nesse sentido, a vocação cristã também é um combate. Ser sacerdote, profeta e rei não é algo idílico, mas o resultado de um cotidiano no qual a santidade, o anúncio e a caridade, próprios a esses elementos da vocação batismal, vão sendo moldados no fiel.

Rezar pelas vocações pode então ser uma oportunidade para redescobrir a vocação cristã mais fundamental, a de uma filiação que, no combate, passa pela santidade, pelo anúncio e pela caridade. Como deixar o Espírito ir modelando em cada fiel a imagem de Jesus, o filho amado/dileto, o verdadeiro sacerdote, profeta e rei? Rezar aqui é deixar-se transformar por aquilo ou por aquele que se contempla. Redescobrir a forma como Jesus vive seu ser filho implicará uma renovação da própria compreensão da existência no Espírito. E certamente, poderá ser uma convocação para assumir carismas e ministérios na Igreja. Estes só se justificam, contudo, se inseridos no grande chamado realizado plenamente por Jesus, o de ser filho/filha amado/a do Pai.

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*Geraldo De Mori, SJ, doutor em Teologia. É coordenador da Pós-graduação da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

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