quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Adrenalina entre os mortos

 domtotal.com
Cada local tem seu cheiro, sua nuance, sua paisagem, sua característica.
Quando a esperança de sair das Ardenas se esvaía, vimos luzes.
Quando a esperança de sair das Ardenas se esvaía, vimos luzes.

Por Luis Giffoni*

Caminhar é conhecer. Caminhar é capturar, criar memória, se embevecer. Depois de atravessar uma região a pé, as lembranças permanecem por mais tempo. Gosto de explorar caminhos. Em geral, os menos trilhados. Já me disseram que é falta do que fazer. Outros, que é um programa sem graça, de gente sem juízo. Se há carro, para que ir a pé? Se há hotel, para que curtir o relento?

Cada local tem seu cheiro, sua nuance, sua paisagem, sua característica. Há cantinhos aonde carros não chegam. Sequer existem hotéis. Há beleza nos cafundós mais perdidos, quilômetros além do lugar onde Judas perdeu a culpa. No Brasil e no exterior. Nunca me esquecerei, por exemplo, da voz sedutora de uma mulher que cantava no meio de rododendros floridos em Ulleri, no Nepal, a dois dias a pé do povoado mais próximo. Ou do vento no Parque Nacional Torres del Paine, no Sul do Chile. Ou do horizonte sem fim no alto do pico Huayna Potosí, a 6088 metros de altura. Ou da majestade da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais. São banquetes da natureza servidos a todos os sentidos. Basta ir lá.

A experiência nas trilhas me anima a assumir riscos. Não deveria. Aquela velha história: prudência e caldo de galinha... Há alguns anos, depois de atravessar os campos e pântanos conhecidos como fagne, me enveredei pela Floresta das Ardenas, perto de Bouillon, no sul da Bélgica, atraído pela beleza dos pinheiros e pela história local.

As Ardenas, durante séculos, têm sido palco de sangrentos conflitos que culminaram na Segunda Guerra Mundial. Milhares de soldados perderam a vida entre aquelas árvores e, até hoje, se encontram no chão cápsulas de balas assassinas. Cada árvore parece um corpo que criou raízes e cresceu onde tombou. É uma floresta de cadáveres que sobem ao céu pelos troncos e pelos galhos. Se os mortos falassem, os gritos de dor, tantos, ensurdeceriam.

Duas horas após o início do passeio nas Ardenas, descobri que estava perdido. Completamente perdido. Esfriava, anoitecia, era inverno, garoava, eu portava apenas um casaco impermeável e não tinha mapa, comida ou água. As perspectivas não eram boas. A temperatura logo cairia abaixo de zero. Não estava sozinho. Um amigo, companheiro de aventura, estremeceu. Eu era o guia, o expert em caminhadas. Falhara. Sentimos medo. Um medo que não tivemos coragem de admitir.

Tentamos achar nossos rastros, nada encontramos. Chamamos por alguém, berramos, só ouvimos o assobio do vento que ganhava força e roubava o calor. Sem sol, a orientação ficou prejudicada. Com a escuridão, nada mais divisamos. No entanto, precisávamos seguir em frente. Para onde? Não sabíamos.

Meu companheiro, muito sensível, enxergou vultos estranhos na neblina. “Fantasmas”, ele admitiu. “Aqui está cheio de fantasma!”. Tentei acalmá-lo, mas ele temia mais alma penada que a noite enregelante. Andamos por mais de duas horas num rumo que só o instinto afiançava.

Quando a esperança de sair das Ardenas se esvaía, vimos luzes. Começamos a correr. Descemos um paredão de rocha e chegamos a um povoado. Era Illy, na França. Havíamos deixado a Bélgica e entrado no país vizinho. Em comemoração, pensei em tomar um café expresso para aquecer o estômago. No entanto, nem bar havia no lugarejo.

Custamos a convencer alguém para nos levar a Bouillon, onde deixáramos o carro. O susto rendeu fruto: decidi nunca mais me aventurar em trilhas sem água e sem comida. A resolução durou uns dois meses. Talvez menos. A adrenalina hidrata e alimenta.

*Luís Giffoni tem 25 livros publicados. Recebeu diversas premiações como do Prêmio Jabuti de Romance, da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Minas de Cultura, Prêmio Nacional de Romance Cidade de Belo Horizonte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário