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A inglesa Downton Abbey concorre em 10 categorias do Emmy.
A série começa no dia exato em que se divulga a notícia do naufrágio do Titanic.
Por Alexis Parrot*
Esta semana conheceremos os resultados do Emmy, o prêmio da Academia de TV norte americana. Concorrendo em 10 categorias, incluindo a de melhor série do ano, em sua temporada final, um grande sucesso de crítica e público: a inglesa Downton Abbey, já um clássico da televisão mundial.
A série retrata o dia a dia de uma família de nobres britânicos (e seus empregados) no início do século XX. Mais que isso, o trabalho impecável de Julian Fellowes, seu criador e roteirista, nos apresenta um apaixonado e acurado retrato de costumes da Inglaterra de ontem e dos elementos arraigados em sua sociedade que prevalecem até os dias de hoje. É um programa genial, no sentido que escolhe ser uma peça de época apenas para dialogar melhor com o tempo presente.
A série começa no dia exato em que se divulga a notícia do naufrágio do Titanic, passa pela Primeira Guerra Mundial na segunda temporada e acompanha o nascimento do Partido Trabalhista como força atuante na política inglesa. Apesar disso, a contextualização histórica não rouba a cena; em Downton ela está ali a serviço das tramas e personagens que navegam por ela - e não o contrário.
Downton Abbey foi ao ar pela primeira vez em 2011, porém, suas origens datam de mais de uma década antes de sua estreia. E tudo começou em um almoço.
Amigos de longa data, o já falecido diretor Robert Altman e o produtor e ator Bob Balaban, encontraram-se para botar a conversa em dia e, de brincadeira, começaram a imaginar que tipo de filme gostariam de fazer juntos. Descobriram uma paixão em comum: a literatura policial e os livros de Agatha Christie. Como pura diversão, Altman inventou ali mesmo (entre o prato principal e a sobremesa) uma pequena trama de época, ao estilo da criadora de Poirot. No início dos anos 30, fazem parte do quebra-cabeças que se revela o assassinato de um abastado homem de negócios: sua família, a criadagem de sua casa de campo, os convidados de um fim de semana de caçadas na propriedade e até uma estrela do cinema mudo.
Com este enredo na cabeça e a vontade de trabalhar com o iconoclasta cineasta de M.A.S.H. e Short Cuts, Balabam acabou conseguindo despertar o interesse da Universal. O que era apenas conversa fiada de mesa de restaurante tornou-se um projeto real: o filme Assassinato em Gosford Park, lançado em 2001.
Para roteirizar a história criada por Altman, o produtor escalou justamente Julian Fellowes - em seu primeiro trabalho para o cinema. A minuciosa pesquisa de época para o roteiro acabou determinando a principal estrutura física e dramática do filme: patrões nos andares acima e criados nos andares abaixo da mansão de Gosford Park, como se fossem casa grande e senzala adaptadas - ligadas por escadas e portas de vai e vem. Mais que uma relação de trabalho, a localização geográfica de cada personagem já dizia quem eram e o que faziam ali, cada qual em sua posição social determinada e irremovível. Por detalhes como este, o filme tornou-se uma pequena jóia cinematográfica e Fellowes abocanhou o Oscar de roteiro original.
Downton é, nada mais nada menos que Gosford Park 20 anos recuada no tempo e parte exatamente do contraste entre classes divididas de maneira bem delimitada para contar suas histórias. No andar de cima, Robert Crawley, o duque de Grantham (Hugh Boneville) e sua mulher Cora (Elizabeth McGovern) tentam controlar a vida desajustada de suas filhas e o destino da propriedade da família. O que foi, a princípio um casamento arranjado (a junção do título nobiliárquico britânico dos Crawleys com a fortuna da família norte americana da noiva) acabou tornando-se um longevo e incomum - para os padrões da classe alta inglesa - caso de amor e paixão. Lady Mary, a filha mais velha, chega a expressar estranhamento ao comentar que seus pais dormem juntos na mesma cama, todos os dias!
Enquanto isso, o andar de baixo é conduzido com mão firme pelo rígido mordomo chefe Carson e pela governanta, Sra. Hughes. Tipos deliciosos como a cozinheira, Sra. Pattmore, ou o projeto de vilão Thomas Barrett movimentam o andar inferior com seus pequenos dramas e alegrias que fazem parte do cotidiano do homem comum. Vivem, porém, em condições de trabalho precárias, dependendo quase exclusivamente do estado de espírito dos patrões.
O humor tipicamente britânico, com suas frases cortantes e certeiras está ali representado por Maggie Smith, a octogenária atriz que interpreta com graça e brilho a irredutível condessa viúva, Lady Violet. Frases de sua lavra (como ... "É evidente que ele é estrangeiro. Nenhum inglês ousaria morrer na casa dos outros!") são a cereja do grande bolo que é a série.
Curiosamente, apesar de se passar na primeira metade do século passado, a se considerar as relações entre patrões e empregados, Downton está a um passo de poder ser ambientada no Brasil de 2016. A dita "flexibilização" das leis trabalhistas, como quer o governo Temer, com a prevalência de acordos específicos sobre a CLT, coloca o trabalhador brasileiro na mão do patrão - como na série - e de volta ao passado: sem direito a décimo terceiro ou retirada do FGTS no caso de demissão sem justa causa, por exemplo.
Mesmo o presidente recém-empossado tendo negado que pretenda aumentar a jornada de trabalho ou esticar para 70 anos a idade mínima para aposentadoria (desautorizando ministros que deram essas declarações), como confiar na palavra de um homem que traiu e conspirou para ser efetivado no cargo ?
Na triste Downton Abbey de Temer, o que nos aguarda, fatalmente, é o andar de baixo.
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.
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