sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O cristão de fé diabólica

   domtotal.com
Fé sem compromisso é dualismo que divide a vida.
Cada um visite os próprios desertos.
Por Gilmar Pereira

O tema da religião é, às vezes, algo assustador. É impressionante aquilo que se faz em nome da fé, seja na promoção do bem, seja na realização do mal. O nome de Deus é constantemente invocado para justificar ações aleatórias e de interesses múltiplos, nem sempre tão religiosos assim.

É claro que o campo religioso não se ocupa somente daquilo que toca o cultual. Uma das acepções mais antigas do termo diz que religião tem a ver com “reler”, vindo do latim “re-legere”. Nesse sentido, a religiosidade seria marcada pela capacidade de olhar para a realidade e ver além, como alguém que lê um texto pela segunda vez, com mais profundidade, colhendo novos sentidos. Semelhante coisa acontece ao poeta que olha “uma pedra no meio do caminho” e não pode esquecê-la e por ela compõe uma poesia.

Mesmo política se relaciona com religião; isso quando se entende que não há distinção entre as realidades divina e humana. A quem tem fé, o mundo tem uma teleologia, caminha para um fim, que desde já deve ser realizado. A justiça e a paz são parte de um paraíso almejado e que, nesta vida, experimenta-se sempre em parcialidade. Nós que habitamos no tempo não gozamos da plenitude que se espera no eterno. Daí a necessidade de lutar para a realização desse bem e que ele seja para todos, conforme a definição de política como a busca do bem comum.

O problema da religião, portanto, não está nela mesma. Ela faz parte de um processo de busca de sentido para a finitude e limites humanos. Tanto que a geração atual, marcada por tantos “pós” (pós-humanismo, pós-modernidade, pós-estruturalismo etc.) e após as críticas ateias permaneça tão religiosa. Parece que a promessa da razão iluminista, capaz da promoção do bem no mundo, mostrou-se falha. Talvez por isso haja um retorno ao religioso, emotivo, sentimental, como apoio frente às dificuldades impostas num cotidiano em que a tecnologia e a ciência avançam e nem por isso o humano se mostra mais fraterno, solidário e bom. O problema está em outro lugar.

Se entendermos o sentido próprio da religião como o ator de reler, precisamos perceber que uma religiosidade sem crítica e que não consegue ler os dados fundamentais da realidade não é religiosa, mas alienação. Eis a diferença entre religião e superstição. O supersticioso não pensa sua fé, não critica o sistema de seu credo nem é capas de perceber falha na liderança religiosa. O falso religioso diz que o importante é somente a intenção do coração, que tudo na sua religião pode estar errado mas que ele faz a sua parte e Deus olha apenas a sua boa intenção. Acontece que ele esquece que o coração, como sede da vida humana, implica em encarnação. Fé sem compromisso é dualismo que divide a vida e já se disse por aí que diabo quer dizer divisor. Conclua por si.

Últimos dias no deserto

Impressiona também como temas religiosos atraem tanto o interesse das pessoas. Basta olhar o grande número de produções artísticas envolvendo o tema.  No fim do ano será lançado um filme sobre Jesus, feito todo segundo a tecnologia de realidade virtual. Será o “Jesus VR – The Story Of Christ”. E, agora, está em cartaz o filme “Últimos dias no deserto”. Ele se passa com a estadia de Jesus no deserto, só que o tentador se afigura como o tentado, ambos interpretados pelo mesmo ator, Ewan McGregor. O segundo olhar que a história propõe é de que cada um visite os próprios desertos, as regiões áridas da própria vida, e confronte o que há de trevas em si.

Gilmar Pereira
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, graduado em Filosofia pelo CES-JF, graduando em Teologia pela FAJE. Apaixonado por arte, cultura, filosofia, religião, psicologia, comunicação, ciências sociais... enfim, um "cara de humanas".

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