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Ao ler o texto de Kopenawa, torna-se clara a cegueira em relação ao povo indígena.
Em 'A queda do céu', Kopenawa nos oferece muito da sabedoria
de seu povo. Devemos saber ouvi-la.
Por Pablo Pires Fernandes*
Um livro é capaz de causar mudanças incríveis. Sidereus nuncius (1610), de Galileu, A origem das espécies (1859), de Darwin ou A interpretação dos sonhos (1900), de Freud são alguns exemplos de que um livro pode causar impacto e transformar radicalmente a visão das pessoas e influenciar regras, comportamentos, estruturas sociais e outras coisas. Não sei se A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, pode ser comparado a esses clássicos citados. A consequência desse relato, publicado na França em 2010 e no Brasil em 2015, ainda é uma incógnita. Mas, é fato que se trata de uma obra paradigmática, como descrevi no último artigo.
São raríssimos os relatos em primeira pessoa escritos pelos índios ou povos originários das Américas. Em geral, a visão é do outro, de gente de fora – por mais dedicada a intenção. Ao ler o texto de Kopenawa, torna-se clara a cegueira do Brasil em relação ao povo indígena, ao povo que vive nestas terras desde tempos imemoriais.
Quando me sentei diante de Davi Kopenawa para uma entrevista, a primeira frase que o xamã me disse foi: “Eu acho que o Brasil é meu”. Como não concordar? Este líder indígena, depois de abandonar sua aldeia, retornou para defender os direitos de seu povo. Criou a Hutukara Associação Yanomami, que canaliza a voz política de resistência desse povo massacrado. Apesar de, oficialmente, terem conquistado suas terras, ainda são submetidos a invasões e violência constantes.
A demarcação das terras yanomami foi a conquista de um direito evidente. Kopenawa, porém, deve rir de nossa expressão “posse da terra”. Os yanomami não têm interesse em possuir a terra, mas fazer parte dela. Essa visão integrada ao lugar onde vivem, colhem, pescam, se banham é indissociável da existência e do modo de vida desse povo. Não lhes interessa – nem consta – o conceito ocidental e capitalista de posse. São eles que pertencem àquela terra e não o contrário.
Essa é uma das razões pelas quais Kopenawa chama os brancos (napë) de povo da mercadoria. A relação com a natureza, para os napë, se dá através da posse, eles se apropriam dela e a subjugam, extraem dela e a exploram indiscriminadamente. Para os yanomami, ao contrário, essa relação é de troca constante e de respeito. Todos os seres são parte de um todo, de um único ser vivo da qual fazem parte. “Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri (os espíritos guardiões, imagens invisíveis que regem a ordem do mundo), os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vendo e o sol”, fala o xamã.
A lição contida nessa visão de mundo traz uma outra. Para os yanomami, os minérios causam doenças e, por isso, Omama (o demiurgo yanomami) os enterrou sob a terra. Uma das causas de o planeta estar doente é o excesso de extração de minérios e do constante revolver da terra. Para Kopenawa, isso pode levar toda a humanidade à ruína, pois o mito da queda do céu – que faz parte da mitologia yanomami – poderá se repetir. A necessidade de uma nova consciência, que saiba olhar o outro e deixar de lado o individualismo, de compartilhar o que a natureza nos oferece, respeitando-a, e não apenas criando um ciclo que valoriza o consumismo degradante e vazio. Sua visão xamânica, em constante contato com os xapiri, estabelece uma transcendência em que passado, presente e futuro e todos os seres, vivos ou mortos, estão interligados. A ausência dessa visão pelos napë, os “enche de esquecimento”, como ele diz.
São apenas alguns aspectos da sabedoria que o xamã yanomami nos traz em seu relato. Seria importante que a palavra de Kopenawa se espalhasse, que tivéssemos a humildade de reconhecer a falência do porjeto cisntificista, extrativista e consumista. Talvez ainda esteja em tempo de salvar o planeta.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.
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