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Há dois Prêmio Nobel realmente discutíveis: o da Literatura e da Paz.
Mas mais impressionante ainda são os nomes que NÃO estão na lista.
Por José Couto Nogueira*
Deve ter sido o assunto mais comentado nas mídias e discutido nas redes, a justiça ou injustiça do cantor dos hippies da década de 1960 ter ganho o Prémio Nobel da Literatura de 2016.
“Cantor dos hippies da década de 1960” já é uma classificação pejorativa, porque redutora, para um criador com algum impacto na poesia do século XX. Impacto esse, diga-se, através das músicas que acompanhavam os poemas, que os poemas escritos poucos terão lido.
Robert Allen Zimmerman, filho de judeus russos nascido no Minnesota, causou grande onda no movimento dito hippie, e também pacifista, tornando-se um símbolo da contestação contra o establishment; a canção “Times are a changin’” é o símbolo dessa postura, e o álbum “Blonde on Blonde” está sempre nas listas dos 100 mais, 50 mais e até 10 mais do século passado.
Isto, que toda a gente sabe, só para reforçar que o vencedor do prémio literário mais cobiçado (mas não mais prestigiado) é um intelectual importante, com livros publicados e que, ficou-se agora a saber, já vinha sendo proposto para o Prêmio há alguns anos. (Um grupo internacional de 700 personalidades faz as listas que depois são apresentadas à Academia Sueca.)
No entanto as reações não foram das melhores. Podemos dividir as opiniões negativas em dois tipos: as que acham que o que Dylan fez não se enquadra na classificação restrita de Literatura, e as que pensam que, dando essa abrangência ao Nobel, outros poetas deveriam ser considerados.
A primeira situação que salta à vista, para quem assistiu aos debates dos últimos dias, é a grande quantidade de pessoas que têm opinião sobre o assunto – muito mais do que as que costumam interessar-se por literatura.
É como diz a critica e especialista portuguesa Helena Vasconcelos:
“Fico verdadeiramente encantada ( e pasmada) com a enorme discussão gerada pela atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan. Supunha eu que os insultos afogueados, a irracionalidade e a ignorância revelada nos argumentos estavam reservados às claques de futebol!. Mas não: toda a gente percebe IMENSO de Literatura. Fantástico! Tanta gente se pronuncia, discute veementemente "o que é a Literatura", o que "pode ser considerado Literatura", o que "deveria ser a Literatura"!!!! Lamento desiludi-los(las) mas essas questões parecem não ter resposta, desde os pobres Platão e Aristóteles que se viram "gregos" (literalmente) para porem ordem nesta maluqueira da Literatura.”
O que coloca no seu lugar a primeira polêmica; de fato podem considerar-se duas definições de Literatura, uma mais restrita que se refere a livros de ficção em prosa, e outra mais ampla que inclui poesia, teatro e até ensaio, desde que tenha qualidade literária. Na primeira definição, que se pensava que era a usada pela Academia Sueca, Dylan não cabe; na segunda, que é a que parece que a dita Academia decidiu usar, claro que cabe.
No entanto, o comentário que nos parece mais pertinente vem da crítica do New York Times, Anna North:
“Sim, Dylan é um poeta brilhante. Sim, ele escreveu um livro de poesia branca e uma autobiografia. Sim, é possível analisar os seus versos (cantados) como poesia (escrita). Mas a escruta de Dylan é inseparável da sua música. Ele é grande porque é um grande músico, e quando a Academia do Nobel dá um prémio literário a um músico, perde uma oportunidade de honrar um escritor.”
De fato, Dylan tem à disposição muitos prêmios na sua área, e aliás já os ganhou todos, até mais do que uma vez – 12 Grammy, Óscar, Golden Globe, e todos os Hall of Fame musicais americanos, além da Medalha da Liberdade e incontáveis outras distinções.
Também se pode argumentar que ele também é escritor, com 29 títulos publicados – no Brasil, a autobiografia, “Crónicas: Volume 1 (2005) e o livro de poemas, “Tarântula”. Mas a verdade é que apenas como escritor não tem grande divulgação.
Depois há a interminável questão de, decidido que possa ganhar um músico, ou um poeta músico, se seria ele o mais indicado. Um dos membros da Academia, Peer Wästberg, não disse por menos: “Ele é provavelmente o maior poeta vivo.” (Isto dá uma ideia de por onde anda a apreciação académica de poesia na Suécia.)
Um que foi logo lembrado foi Leonard Cohen, mas o canadense pronunciou-se imediatamente com a maior elegância: “É como dar uma medalha ao monte Evereste por ser a montanha mais alta”.
Mas há outros poetas notáveis na música, como todo o mundo sabe. A revista “Veja”, num ataque de chauvinismo, lembrou Caetano Veloso e Chico Buarque; e cada país terá os seus bardos com dotes poéticos comoventes. Jacques Brel, ocorre logo, ou Peter Sinfield (autor do poema “Epitaph” , tocado pelos King Grimson). A lista é interminável e, na verdade, os melhores já receberam prêmios dentro da área.
Claro que os músicos se sentiram honrados com a escolha. Veja-se o depoimento de Guilherme Isnard:
“Sempre relutei em considerar-me um poeta e tive muita resistência em aceitar-me como cantor. Tinha minhas letras e meu canto como o fruto do labor de um bardo: uma forma catártica de esvaziar minha mente das palavras e pensamentos que nela se acumulavam e me afogavam. A frase de Pessoa “a canção é uma poesia ajudada” exprimia minha visão e a confinava.
Foi através da amiga e colega Thalma de Freitas que tudo mudou. Ela um dia me contou feliz que tinha recebido a letra de “Quimeras” na circular do seu grupo de discussão de poesia e isso me fez considerar a possibilidade de que eu talvez fosse um poeta.
Assim que essa ficha caiu, resolvi outro grande dilema existencial. Eu era muito angustiado, arrependido de ter abandonado a carreira acadêmica por só ter encontrado mestres que confundiam educação com disciplina. O autoritarismo acabou me empurrando para as artes, mas sempre me achei desperdiçado para a ciência até ler Bacon, o pai da Ciência Moderna, e descobrir que ele classificou a poesia como a Ciência da Imaginação.
Acordar com a notícia de que Dylan ganhou o Nobel de literatura foi a cereja desse bolo. O prêmio coroa tanto o sentimento de Fernando quanto a visão de Francis ao colocar a obra de um poeta letrista, cronista do nosso tempo e costumes, no panteão dos mestres imortais da literatura.”
Já agora, por puro divertimento, reproduzimos aqui um texto do grande poeta português Alexandre O’Neil (outro que podia ser candidato...), publicado no jornal “A Capital” em 1974. (Atenção, tem um vocabulário eventualmente chocante...)
“Mais do que uma característica vocal, a “fanhosez” (real ou por mim imaginada?) de Bob Dylan é uma qualidade estilística alimentada por uma recusa, um a contrapelo de quem sabe, muito conscientemente, conter-se na efusão do sentimento e, até, “desmentir” no cantar a palavra que canta.
Não que ele desminta a palavra a nível do conceito e da “mensagem”. O que acontece é que Dylan a rejeita como lugar-comum cantabile, como repositório-comum de sentimentos pré-catalogados e como air de bravoure. Diríamos que Dylan não maiusculiza nada. As massas verbais que, sem ornatos, debita dão conta de muita coisa bela, grande, divertida ou terrível, mas a força comunicante do trovador está, principalmente, no partido que ele tira da monotonia, repetição e progressão “fanhosas” de um texto maravilhosamente aliado à música. Este é um caminho de voluntária pobreza.
Um mínimo de suporte e de efeitos, para um máximo de comunicação verbal. “Sentir? Sinta quem ouve!”, apetece dizer, parafraseando Fernando Pessoa, a propósito do discurso de Bob Dylan.
Isso a que eu chamo de “fanhosez”, que musicalmente deve ter uma explicação, muito em particular no campo da balada, ganha em Dylan as características um estilo. Para muitos, tal estilo não passa de maneirismo. Mas Dylan sabe, com e depois de Woody Guthrie, de Pete Seeger e Brassens, que a palavra só move mundos quando é entendida na sua integridade. E Dylan é, também, um excelente poeta, isto é, alguém capaz de entender que “o lirismo é o desenvolvimento de um protesto”.
Do “fanhoso” do Minnesota não se poderá dizer, como Flaubert de um cantor de ópera sua criatura: “Havia nele algo de cabeleireiro e de toureiro”.
Ponham nele os ouvidos certos baladeiros portugueses e espanhóis que fazem das palavras vazadouros das mais simplesmente sentimentos.”
Enfim, de tudo isto, o que se pode concluir é que há dois Prêmio Nobel realmente discutíveis, que hão-de sempre provocar ondas: o da Literatura e o da Paz. Embora em campos diferentes, são ambos bastante políticos e portanto sujeitos à conjuntura da época e, até, aos complexos dos suecos (e dinamarqueses, no caso da Paz) quanto à sua posição no mundo. No prêmio de literatura, além das jogadas políticas há ainda os interesses comerciais – e há, parece-nos, uma dificuldade congénita dos académicos suecos em escolher literatura mundial. Veja-se a lista dos mais de cem vencedores. Certos nomes que lá figuram não tiveram repercussão literária nem no tempo em que foram galardoados. Nunca foram muito lidos e estão completamente esquecidos. Mas mais impressionante ainda são os nomes que NÃO estão na lista.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.
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