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Scotus foi um autêntico precursor da Modernidade, revelando-se simultânea e paradoxalmente moderno e anti-moderno.
Cena do filme 'Duns Scotus', de Fernando Muraca.
Por Sinivaldo S. Tavares*
Amanhã, dia 9 de novembro, celebramos a recorrência litúrgica do beato João Duns Scotus, grande pensador franciscano dos séculos XIII e XIV. Nascido na cidadezinha de Duns, na Escócia, em 1265/6, e falecido prematuramente em Colônia, Alemanha, em 1308, Scotus foi considerado, com razão, máximo expoente da “Escola Franciscana”. Suas intuições e sistematizações teológicas muito contribuíram, nesse sentido, para a consolidação de uma maneira específica de refletir teologicamente que nos foi legada pela tradição com o nome de “teologia franciscana”.
Scotus é filho daquele período descrito plasticamente pelo grande historiador Huizinga como “outono da Idade Média”, constituindo-se um fruto maduro daquela fecunda estação. Contudo, graças a algumas de suas principais intuições e sistematizações, Scotus se apresenta como um autêntico precursor da Modernidade, revelando-se simultânea e paradoxalmente moderno e anti-moderno. Ao defender o pluralismo epistemológico, ele constitui um dos primeiros rebentos daquele processo histórico que desembocou na Modernidade. Todavia, enquanto concretização de uma “epistemologia forte”, racionalista e naturalista, a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado e proposto por Scotus.
O período histórico em que viveu Scotus é atravessado por duas trajetórias filosófico-teológicas bem definidas: agostiniano-boaventuriana e aristotélico-tomista. E uma única matriz polêmica a provocá-las e animá-las: o ingresso dos textos de Aristóteles na Universidade de Paris, segundo as versões de Avicena e de Averróis. Nesse contexto, Scotus assume uma postura crítica face aos pressupostos e às principais posições defendidas por ambas as escolas, revelando-se um pensador original. Avesso a posições rígidas, Scotus é possuidor de um espírito crítico agudo e corrosivo. Convencido de que a exacerbada contraposição entre as duas posições fosse a principal responsável pela situação de estagnação da qual era vítima a teologia de seu tempo, Scotus mão se deixa intimidar face aos grandes desafios oriundos desse bipolarismo. Ao contrário, ele acolhe essa situação como ocasião privilegiada para relançar a teologia cristã a partir de suas próprias bases, convencido de que, uma vez recuperadas, elas se tornariam autênticas molas propulsoras do processo de diferenciação da teologia cristã em relação às concepções grega e árabe. E o faz movido não por algum tipo qualquer de partidarismo, mas por um sadio desejo de recuperar o que é próprio da teologia cristã, como contribuição privilegiada ao diálogo plural que ele tanto preza. Graças a suas posições e seu modo peculiar de sustentá-las, Scotus se revela como autêntica testemunha do pluralismo epistemológico.
A despeito de todo o seu empenho, os sulcos abertos por ele não foram percorridos pelo Ocidente. No nascedouro da Modernidade, sua posição foi preterida, permanecendo à margem de seu longo e sinuoso itinerário histórico. O “nosso tempo” parece caracterizado pela experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela deslegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto face aos grandes projetos construídos sobre a razão, que pareciam constituir um alicerce sólido. Chega-se a falar em pós-Modernidade como tempo apto a exprimir o total desencanto face aos projetos totalizantes e por demais pretensiosos da Modernidade. Talvez seja essa a razão do crescente interesse, perceptível em nossos dias, mormente em ambientes acadêmicos, pelo pensamento de Scotus.
Por esta razão, a recuperação do pensamento de Scotus pode ser de grande valia na árdua incumbência que pesa com gravidade sobre nós: forjar caminhos alternativos que nos libertem deste “beco sem saída” no qual nos tem encurralado o paradigma hegemônico moderno. Acreditamos que a específica contribuição de Scotus no tocante à formulação de um novo paradigma civilizacional é de caráter substancial. Ela não se limita, portanto, a elementos fragmentados, esparsos no interior de sua imponente reflexão teológica, mas, ao contrário, ela diz respeito à construção e proposição de um paradigma alternativo ao antropocêntrico e predatório, paradigma vigente na Modernidade.
O pensamento de Scotus é extremamente complexo. E complexo, etimologicamente falando, vem de com-plexus, vale dizer, “o que é tecido em conjunto”. Por isso, seu discurso se configura como uma trama tecida a partir de vários pontos: autênticos feixes que se entrelaçam de tal forma a constituir um todo orgânico. Salientamos que, não apenas seus conteúdos, também o exercício de seu pensamento é extremamente complexo. Operando uma autêntica desconstrução do primado do intelecto sobre a vontade e da verdade sobre o bem, pressupostos da perspectiva aristotélico-tomista, Scotus põe como núcleo de sua trama o par de termos recíprocos e complementares: liberdade e contingência. Ao redor desse núcleo é que se compõem os demais pontos que lhe são interligados, no conjunto de uma intrincada e bem tecida trama: a índole positiva do contingente, a univocidade do entre, a haecceitas como expressão da singularidade dos entes e a pessoa humana, concebida singularmente, como ultima solitudo. E o fio a perpassar cada um desses pontos nevrálgicos, enredando-os numa única tessitura, é a afirmação do primado universal de Cristo.
O primado universal de Cristo é, em última instância, o núcleo mais íntimo da série de primados que Scotus propõe: da vontade sobre o intelecto; da caridade sobre a verdade; da liberdade sobre a necessidade; do singular sobre o universal; da pessoa humana sobre a espécie. Todavia, estes primados scotianos não devem ser entendidos como a substituição do primeiro termo do binômio pelo segundo, posto que ele não separa nem contrapõe os pólos, mas, ao contrário, é a partir da afirmação de um pólo que ele inclui o outro como seu pólo recíproco e complementar. Não se trata, por exemplo, de uma vontade arbitrária nem despótica. A vontade não se opõe, nem nega o intelecto, mas o transcende. A mesma coisa vale com relação à liberdade. Ela não é irracional nem arbitrária. Ela transcende a necessidade, revelando-se como seu horizonte de sentido, Assim sendo, a desconstrução operada por Scotus desmascara a falsa contraposição entre os pólos constitutivos dos pressupostos que ele analisa, para explicitar, sucessivamente, as articulações intestinas entre ambos, salientando sua índole recíproca e complementar.
Scotus permanece, portanto, como um testemunho de singular fidelidade criativa. De fato, permanecendo nos sulcos da mais genuína tradição, na tentativa de poder extrair dela suas próprias e intrínsecas virtualidades, ele recriou suas expressões, suas articulações internas e suas perspectivas. Por tudo isso, seu pensamento nos atinge como uma interpelação. A responsabilidade face aos desafios do “tempo presente” implicará em que a teologia os conceba na sua complexidade: elas não os interpretará apenas como problemas ou situações a serem debelados, mas também como chances, ocasiões inusitadas, para o permanente processo de recriação de si própria. Para que a teologia cristã possa, portanto, resgatar sua mais autêntica originalidade é imprescindível que ela acolha as grandes questões que caracterizam o “nosso tempo” e as frentes destemidamente. Entre tantas lições de Scotus, esta nos parece ser a mais complexa e, todavia, a mais urgente.
* Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.
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