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Novela sem abertura é como um livro sem capa; um presente desembrulhado.
Betty Faria e Francisco Cuoco: dinheiro na mão é vendaval. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*
Algo de estranho vem acontecendo. As aberturas de novelas e suas músicas, historicamente o cartão de apresentação dos folhetins, têm sido colocadas estrategicamente em segundo plano. Para prender a atenção de um público em dispersão crescente e evitar que telespectadores exerçam o seu sagrado direito de zapear, são cada vez mais breves e geralmente deslocadas para o meio ou o final do capítulo. (Será que ainda podem ser chamadas de aberturas?)
Na recente estreia da nova global das nove, O Outro Lado do Paraíso, chegaram ao cúmulo de nem exibirem uma abertura - o que foi fartamente comentado nas redes sociais. Perdemos nós, que não pudemos ouvir, desde o primeiro dia, Renato Russo e seu Boomerang Blues.
Novela sem abertura é como um livro sem capa; um refrigerante sem rótulo; um presente desembrulhado. Perde-se algo da identidade do produto; e da mesma forma, perde-se a oportunidade de dizer mais sobre aquela obra, de produzir significados (gráficos, simbólicos ou musicais) que possam enriquecer o discurso radiofônico que até hoje toda novela ainda reproduz.
Em um tempo pré-internet, me lembro como nossa curiosidade era atiçada, sempre que ia estrear a próxima novela: como seria a abertura? Qual seria a música? Quando muito, em se tratando de novelas da Globo, na véspera da estreia, o Fantástico exibia um videoclipe antecipando em um dia o fim do mistério. Na era do bombardeio desenfreado de informações sem filtros (e sem apuração séria em muitos casos) sabe-se quase tudo de antemão. Por um lado, podemos exercitar mais e melhor nosso direito à informação; sob outro ponto de vista, vivemos também o algo melancólico que advém com a supressão da surpresa.
Causos e história
Para Anos Dourados, Tom Jobim fez a música, mas Chico Buarque atrasou na entrega da letra. O resultado: a abertura da minissérie foi ao ar com uma versão apenas instrumental. Tivemos que esperar um pouco mais para ouvir Maria Bethânia cantar a delicada e inesquecível versão de Chico para algo que todos nós conhecemos bem, a crônica de um grande amor que não deu certo.
Para Pecado Capital, reza a lenda que o diretor musical da Globo trancou Paulinho da Viola em uma sala da emissora para que ele compusesse no susto o tema de abertura da novela. Tudo em Pecado Capital começou assim, na correria e de supetão. Preocupada com os cortes que a censura já vinha impondo ao texto de Dias Gomes para Roque Santeiro, a direção do canal decidiu abortar o projeto - cujas gravações já haviam começado - antes mesmo de começar a exibi-lo.
Com pouquíssimo tempo até a estreia, botaram uma reprise no ar para ganhar algum tempo e escalaram a rainha Janete Clair para produzir uma nova sinopse em curtíssimo prazo que aproveitasse os atores que fariam a novela abandonada. Assim, Sinhozinho virou Salviano Lisboa; Porcina virou Lucinha e Roque deixou de ser santeiro para dirigir um táxi como Carlão. Roque Santeiro ganhou vida apenas dez anos depois, no rastro da democratização do país, em 85; e a TV brasileira ganhou dois clássicos no lugar de um. Três clássicos, se contarmos também o "dinheiro na mão é vendaval" do mestre Paulinho.
Boni, o todo poderoso da Globo durante décadas, também gostava de participar e até que levava jeito para a coisa. É dele a letra da música com que Luiz Caldas abria cada capítulo de Tieta e do Rap do Rei, interpretado pelo grupo Luni para a abertura de Que Rei Sou Eu?
Enquanto escrevo este artigo, vou escutando antigos sucessos de aberturas de novelas a que todos nós assistimos. Convido todos para um desafio: quem é capaz de dizer de qual novela estou falando?
Escuto a música e imediatamente me vem à mente uma boneca de sucata dançando ao ritmo frenético do "saleroso" Magal. Ednardo me leva a outro lugar, mítico, nas asas de um pavão mysteriozo. Fagner diverte ao fazer pedras rolarem animada e freneticamente; mas também nos toca fundo quando abre o peito e deixa voar seu coração - sabe tudo, o Fagner. A patota do Roupa Nova embalando uma festa baile dos anos 50. Em um jogo de sedução cantado pelo britânico Ritchie, um casal vai se conhecendo por meio de objetos estereotipados que pretendem determinar o que é masculino e o que é feminino.
Os pelotenses Kleiton e Kledir tentam aumentar a temperatura do verão carioca com a ajuda da baiana Simone (se isso não for cosmopolitismo, o que mais seria?). A fofoca corria solta com sirigaitas se digladiando uma de olho no marido da outra ou com a história da senhora que "tratava a empregada como filha" - como todo patrão que ainda resiste a contratar com carteira assinada, em se tratando das relações de trabalhos domésticos.
Leo Jaime mandando versos batidos e torpedos para conquistar as moças, ou melhor: todas as moças; melhor ainda: qualquer moça! As Frenéticas sempre foram "habitués" de aberturas, quer seja para cair na gandaia ou para falar sobre o prato preferido da família brasileira. Já Baby do Brasil (ainda Consuelo na época) declarou toda sua paixão para um jovem surfista do Rio - vamos torcer para que o MBL não a chame de pedófila!
Os Doces Bárbaros, baianos eternos, sempre marcaram presença. Bethânia interpretando Roberto em homenagem a Lima Barreto ou nos deliciando com um passeio por Copacabana; Gal tentando reatar um amor perdido ou descrevendo dois Brasis - um que nos barra na porta da festa e outro que, apesar de cheio de história e glória, acaba indo embora pelo ralo. Caetano com um antigo sucesso virou hino dos cara pintadas na derrocada de Collor enquanto Gil, com o arado amarrado a uma estrela, defendeu o direito à terra de todos os brasileiros.
Mas a campeã é mesmo Rita Lee: cantando no escurinho do cinema; nos convidando para bailar com ela ou para chegar mais pertinho; introduzindo as aventuras da descendente de Santos Dumont; equilibrando-se no arame e louvando os prazeres de um bom sassarico; ajudando a escolher novos alvos do alto de uma janela indiscreta; fazendo fundo musical para tesouras, linhas e agulhas de costura com vida própria. Rita é tão versátil que marcou época até com sua cor de rosa choque, na TV Mulher de Marília Gabriela.
A verdade é que no passado já ousaram mais nas escalações: Eduardo Dusek em Bebê a Bordo e As Filhas da Mãe; Gang 90 e Absurdetes em Louco Amor; Vange Leonel e seu grupo Nau em Vamp; o Magazine de Kid Vinil em A Gata Comeu; Ira, em O Outro (a abertura era bem melhor que a novela); e merece menção também o eletrotango dos argentinos do Bajofondo para A Favorita.
Por falar em favorita, é certo que todo mundo tem a sua. Para mim, a abertura de mais significado (porque comentava de forma inusitada e com muito sentimento a trama principal da novela) e mais bonita já feita até hoje foi a de O Dono do Mundo, de Gilberto Braga.
Éramos brindados, de segunda a sábado, com este presente: o maestro Tom Jobim cantava sua música Querida (que poderia ter sido escrita por Cole Porter) enquanto Charlie Chaplin brincava com um globo terrestre na cena antológica de O Grande Ditador.
Ao unir Tom e Chaplin, dois dos maiores artistas que o mundo já viu, a TV brasileira encontrou um de seus momento mais especiais, grudado para sempre em nossa memória. Abrir mão, como estamos vendo ultimamente, de mais esta maneira de conectar-se com o telespectador é uma lástima e um erro.
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o Dom Total.
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