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Estão tentando nos separar e semear desconfiança e suspeita. Essas são ameaças fundamentais à solidariedade, ao laço social e até à dignidade humana mais básica
Mentir destrói a confiança entre as pessoas corroendo a comunicação. (Reprodução/ Pixabay)
Por Heidi Schlumpf
Quando o presidente Donald Trump twittou que a 'Time' o contatou para ser nomeado a "Pessoa do Ano" e que ele teria recusado, um representante da revista disse que no tweet do presidente faltava "uma porção de verdade".
No dia seguinte, foi noticiado que Trump estava negando que era sua voz na fita usada no famoso programa de TV "Access Hollywood", na qual ele faz comentários vulgares sobre mulheres. Mas quando a fita foi tornada pública, no ano passado, ele reconheceu que era sua. Ambas as coisas não podem ser verdadeiras.
Enquanto isso, em menos de uma semana, o 'The Washington Post' revelou que uma organização ativista pagou uma mulher para mentir sobre ter ficado grávida do candidato ao Senado, Roy Moore, quando era adolescente. A história foi uma tentativa de expor midiaticamente o jornal, caso a história falsa fosse publicada, mas o a verdade foi esclarecida: o abuso e a gravidez não aconteceram e a mulher trabalhava para uma organização ironicamente chamada Veritas, que significa "verdade" em latim.
Estes últimos três exemplos levantam a questão: É errado mentir? Ou ainda, é um pecado - como diriam os católicos?
Absolutamente, diriam os teólogos e moralistas. Como muitos pais costumam dizer, não é porque todo mundo está fazendo isso que está certo.
A tradição ética da Igreja católica é clara. Mentir é moralmente errado e, na verdade, sustenta-se que é errado em todas as situações, embora alguns moralistas vejam algumas distinções. Contudo, todos concordam que as consequências da mentira são especialmente graves quando realizadas por líderes de instituições sociais, como o governo, a mídia ou até mesmo as igrejas.
"Mentir destrói a confiança entre as pessoas corroendo a comunicação", disse Lisa Fullam, professora de teologia moral na Escola Jesuíta de Teologia da Universidade de Santa Clara na Califórnia.
A mentira generalizada - ou talvez o conhecimento generalizado sobre a mentira, graças às novas mídias e tecnologias - pode levar ao cinismo, no qual as pessoas assumem que todos são falsos para seu próprio interesse, disse Fullam.
Isso não é apenas pecaminoso, mas tem implicações perigosas para uma democracia, onde a confiança na honestidade dos líderes é crucial e o conhecimento verdadeiro é necessário para a cidadania, aponta a professora.
O problema das chamadas fake news, ou notícias falsas, e outras mentiras nas mídias sociais já chamou a atenção do Vaticano, que anunciou que o Papa Francisco abordará o tema em seu discurso para o Dia Mundial das Comunicações em maio de 2018. O tema será: "A verdade vos libertará" (Jo 8,32).
O tema será particularmente útil para os estadunidenses, que passam quase 11 horas por dia diante de uma tela de televisão, onde suas notícias são mediadas por algoritmos e empresas que decidem o que devem ver, disse Marcus Mescher, professor assistente de ética cristã da Universidade Xavier em Cincinnati.
"Vivemos em uma cultura do 'copia e cola', onde as coisas podem ser editadas, retiradas de seu contexto e 'photoshopadas'. Há muitas oportunidades de decepção e distorção", disse Mescher. "Portanto, é mais fundamental para nós, que sermos honestos e transparentes, responsabilizarmo-nos por padrões de verdade e confiabilidade e discernir se o que estamos compartilhando ou consumindo é confiável".
Mary Beth Yount, professora associada de estudos teológicos na Universidade de Neumann em Aston, Pensilvânia, concorda que a ética da honestidade e da desonestidade não tem implicações individuais, mas sociais.
"Especialmente agora, as pessoas em geral não sabem em quem confiar, quem falará por elas e delas cuidará", disse Yount. "Muito disso vem do engano intencional, por exemplo, de influenciar as eleições, ganhar dinheiro em desvio de fundos ou apoio político, ou mesmo para promover leitores ou aumentar os cliques. É muito desafiador em nossa sociedade ser sincero e confiar que os outros estão sendo verdadeiros".
O que a igreja ensina
É claro que "não apresentar testemunho falso contra o nosso próximo" é um dos Dez Mandamentos e a discussão sobre a mentira no Catecismo da Igreja Católica vem sob a seção dos mandamentos.
Mas grande parte do ensino do catecismo vem realmente de Santo Agostinho, que foi o primeiro a articular a posição da igreja a respeito da mentira. "Agostinho condena mentir em todas as circunstâncias", explicou Julia Fleming, professora de ética da Universidade Creighton em Omaha, Nebraska. "Ele vê a mentira como uma violação contra Deus, que é a verdade. Os seres humanos devem escolher Deus acima de todas as coisas, incluindo nossa sobrevivência física ou outras coisas desejáveis".
Então, de acordo com Agostinho, os fins nunca justificam os meios e mesmo as mentiras que podem salvar vidas são consideradas moralmente erradas.
Mas Santo Tomás de Aquino expande esse ensino. Embora mantendo que toda mentira é pecaminosa, faz a distinção de que "nem toda mentira é séria", disse Fleming. A gravidade do pecado pode depender do ato real ou da intenção e / ou das circunstâncias.
"Quando você pretende machucar alguém é diferente de quando mente para ajudar alguém", disse Fullam. "Quanto maior o bem que se pretende com a mentira, mais o pecado diminui na gravidade. Mas ainda é pecado".
A definição do catecismo de uma mentira é "dizer o que é falso com a intenção de enganar o próximo" (número 2508), o que sugere a dimensão comunal e relacional da mentira.
Mas nem todas as declarações falsas são mentiras, uma vez que uma mentira deve ser intencional. "Uma pessoa pode estar confusa, delirante ou ser uma daquelas pessoas para quem a distinção entre verdade e falsidade parece não ter significado", disse Fleming.
Mas é precisamente essa intenção de enganar que é tão perigosa sobre as mentiras que nos contam hoje em nossa cultura, disse Mescher. "O objetivo é fomentar o medo e a divisão", disse ele. "Isso é o que eu acho tão moralmente ultrajante. Estão literalmente tentando nos separar e semear desconfiança e suspeita. Essas são ameaças fundamentais à solidariedade, ao laço social e até à dignidade humana mais básica".
Grande parte da discussão em torno das muitas declarações falsas do presidente Trump depende da intenção ou não de enganar, mas isso acaba sendo só mais um aspecto da culpa moral, disse Fullam.
A ideia de "ignorância vencível" diz que as pessoas não podem ser absolvidas da responsabilidade moral por declarações falsas apenas porque não conheciam a verdade - se o assunto for algo que razoavelmente deveriam saber ou ter sabido, disse Fullam.
A "ignorância vencível" acrescenta outra camada de habilidade para avaliar o ato de alguém, disse ela.
Da mesma forma, a igreja ensina que as autoridades civis, particularmente, têm a responsabilidade ética de fornecer informações precisas. O documento do Conselho do Vaticano II Inter Mirifica (o Decreto sobre os meios de comunicação social) observou que a sociedade tem direito à informação baseada na verdade, na justiça e na solidariedade, disse Fleming.
"A verdade ainda importa, porque agimos sobre o que percebemos ser a verdade", disse ela, citando o exemplo de informação enganosa sobre supostas armas de destruição em massa levando os EUA a uma guerra no Iraque depois do 11 de setembro.
Além de plantar medo e suspeita, mentiras e "falsas notícias" matam a compaixão e promovem a apatia ou inércia moral, disse Mescher. "Isso faz com que o compromisso das pessoas seja moralmente responsável para si e para o outro".
Esperança para o futuro?
Pode a igreja - apesar de sua própria história não ser sempre verdadeira - ser profética na praça pública sobre a importância desta virtude?
Sim, a igreja pode oferecer não só sua voz, mas seus rituais, como o sacramento da reconciliação e o perdão, disse Mescher, que suspeita que o papa lamentará o atual estado de coisas em sua próxima mensagem sobre notícias falsas.
Yount é otimista. "Não é tarde demais", disse ela. "Há quebras que estão acontecendo, mas ainda podemos fazer as coisas bem".
Ela observa que o catecismo exige reparações por parte de quem mente, seja por compensação direta ou "satisfação moral em nome da instituição de caridade" (Número 2487).
Mas a igreja deve ser uma porta-voz da verdade para ter alguma credibilidade, especialmente entre os mais jovens que desconfiam tanto das instituições religiosas. "Eu espero mais deles [os líderes da igreja], quero vê-los entrar nessa dinâmica juntos, enfrentando algumas verdades difíceis", disse Yount.
A igreja pode se comprometer novamente com a verdade, disse Fullam, embora a honestidade possa ser arriscada. "Mas este é um momento em que realmente precisamos nos concentrar no que significa ser pessoas verdadeiras", disse ela.
Talvez este seja um momento de alerta, disse Fleming, e o aumento da mentira pública chamará a atenção para a questão. "Não existe tal coisa como fatos alternativos. Pode haver interpretações alternativas. Mas as coisas são ou não são", disse ela. "No final, acredito que a verdade tem um poder próprio".
National Catholic Reporter - Tradução: Ramón Lara
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