terça-feira, 2 de janeiro de 2018

The Good Place: uma divina comédia

domtotal.com
Um paraíso comum para todos os credos parecer ser uma mensagem importante para os dias perigosos que vivemos hoje.
Ted Danson e Kristen Bell: mestres na arte de fazer rir.
Ted Danson e Kristen Bell: mestres na arte de fazer rir. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*

Todos nós, em algum momento da vida, já paramos para pensar no que acontece após a morte - e todos nós já nos angustiamos com isso.

O tema é fartamente explorado pelo cinema, quer seja com a representação judaico-cristã de céu e inferno (O céu pode esperar, o filme com Warren Beatty; e Desconstruindo Harry, uma pequena preciosidade com que Woody Allen nos presenteou) ou com uma visão mais alinhada com o espiritismo kardecista (Um visto para o céu, dirigido por Albert Brooks em 91).

Há também aquelas obras que se alimentam do lado sobrenatural da coisa toda: Ghost arregimentou uma legião de fãs com a história do espírito que não consegue fazer a passagem definitiva.

Na seara do fantasmagórico, vale mencionar também o livro de Jorge Amado, Dona Flor e seus Dois Maridos, que trata do assunto de maneira bem popular e temperada com dendê. Já virou filme com Sonia Braga e José Wilker; uma versão norte americana com James Caan e Ryan O'Neil; série de TV com Edson Celulari e Marco Nanini; musical no teatro e, mais recentemente, um daqueles filmes da Globo que mais parecem uma novela.  

Sempre haverá filmes lidando com essa questão: imaginar como seria a próxima estação do trem que nos leva pela vida afora depois do ponto final é sempre um exercício de criatividade no mínimo interessante e algo que desperta nosso fascínio, desde a época de Dante Alighieri.

The Good Place, série do Netflix já na segunda temporada, alimenta-se desse filão com bom humor e elegância.

Após a morte, quem foi bom vai para esse "good place" do título; quem não foi vai para um "bad place". A premissa binária e maniqueísta engana à primeira vista, mas nem tudo que é simples deságua obrigatoriamente no terreno do simplório - a grande lição dada pela série.

Nessa construção do pós-vida que o programa apresenta, as religiões não importam e sim a ética. Ali a fé não move montanhas; apenas o caráter de cada um vai definir seu destino final.

Um paraíso comum para todos os credos parece ser uma mensagem importante para os dias perigosos que vivemos hoje. Esse "good place" poderia ser aqui mesmo, sem o fanatismo e o preconceito religioso que prolifera por todos os cantos do globo.

É imperativo dizer que nem todas as piadas funcionam, o elenco é desigual, a diversidade étnica dos personagens acaba soando fake e forçada e os efeitos especiais são mambembes... mas tudo vale pela trama e pelo simples prazer de assistirmos a Kristen Bell (ex-Veronica Mars, verdadeira joia na arte da comédia) e a Ted Danson; este em um registro completamente diferente de tudo que já fez até hoje.

Danson caminhou longamente até chegar aqui. Em The Good Place, o galã de Cheers ficou definitivamente no passado. Em Becker, a sitcom dos anos 90 sobre o cotidiano de um médico mal-humorado e misantropo, o ator já havia dado todas as mostras de que podia mais.

Ao viver Michael, o arquiteto (a ideia de um Deus arquiteto ecoa preceitos da maçonaria, São Paulo e São Tomás de Aquino) responsável pelo design e coordenação da vizinhança para onde a personagem de Bell é designada após a morte, nos surpreende o tempo todo. Puro deleite.

Em última análise, o que The Good Place nos oferece é inestimável: pensar sobre a morte com leveza e picardia só pode competir para que nos sintamos mais confortáveis na caminhada que empreendemos - diariamente - em direção a ela. 

E, além disso, o final da primeira temporada é um dos mais ousados e interessantes já vistos na televisão. Só isso já merece nossa atenção e fidelidade à série.   

Na balança, as qualidades superam em muito as fragilidades do programa, certamente um grande acerto do Netflix.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.

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