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A relação entre cristianismo e o mundo das ideias é conflituosa.
O mundo está ameaçado por ideologias fundamentalistas apoiadas na violência e
na criminalização da pobreza. (Reprodução/ Pixabay)
Por Élio Gasda*
O poder das ideias transforma a humanidade. São molas propulsoras da existência. Quem tem ideia própria não vive à sombra de ninguém. Em nome delas se fundam filosofias, religiões, sistemas econômicos e projetos políticos.
A sociologia descreve uma ideologia como uma associação de ideias, visões de mundo, princípios filosóficos que orientam a vida de indivíduos, grupos e movimentos. Quantas ideologias existem? As ideologias não desapareceram. Muito pelo contrário, evoluíram e se multiplicaram ad infinitum. O mundo mudou. Novas visões da vida, da sociedade, irrupção de novas identidades e culturas. Ainda que exista uma ideologia hegemônica, há muitas teorias e ideias que orientam atitudes individuais e coletivas.
Toda sociedade tem seu arcabouço ideológico. Qual é sua opção ideológica? Você é de direita, de esquerda, de centro, de centro direita, de centro esquerda, de extrema esquerda ou de extrema direita. É conservador, reacionário, liberal, fundamentalista, reformista ou revolucionário? Talvez seja alguém multi-ideológico. Critica a direita mas tem posturas conservadoras. É conservador na política, socialista na economia e libertário na vida privada. É alguém de direita que apoia a liberalização da maconha, mas acredita que lugar de mulher é na cozinha. O que é ser de direita? O que é ser direita? Qual a diferença?
“Si hay gobierno soy contra”. Então você é uma anarquista. Mas de qual corrente? Anarquismo ambientalista? anarco-feminista? Anarquista libertário socialista ou um anarco-capitalista? É um crítico do casamento gay, mas protestou contra a reforma trabalhista. Você é socialista-conservador. É um liberal clássico ou um neoliberal feminista?
Você pode ser socialista sem ser marxista por exemplo. O socialismo não surgiu com Marx. O próprio Marx distinguiu o socialismo utópico do socialismo científico. Existe um socialismo marxista comunista e um socialismo comunista não-marxista. Existe também um socialismo libertário, um socialismo de mercado e os neo-socialistas democratas adeptos de um capitalismo mais social. Trotskista, leninista gramsciano ou luxemburguista? Socialista cristão não-marxista é outra possiblidade. Você pode ser um socialista não-comunista. Anarco feminista marxista ou um transfeminista anarquista? Um ecopacifista? Pode ser tudo isso e também um ambientalista adepto da ecologia profunda. Um vegano, mas ecocapitalista.
A Doutrina Social da Igreja, que surgiu como uma resposta às ideologias da modernidade, continua com a difícil tarefa no século XXI. A relação entre cristianismo e o mundo das ideias é conflituosa. Não admite simplificações. O capitalismo, o socialismo, o liberalismo, o comunismo não são mais os mesmos de dois séculos atrás. O contexto histórico exige uma reflexão crítica. Filosofias, partidos e organizações sociais mudam ao longo do tempo. É preciso manter abertas as vias de diálogo com as novas tendências presentes na sociedade civil. No campo das ideias não existem donos da verdade. A mesma realidade pode receber interpretações distintas. Mas, mais importante que as ideias, é o uso que se faz delas.
As ideologias só chegarão ao fim quando a história terminar. Elas estão vivas e atuantes. A morte das ideologias significaria a morte da razão e da liberdade. Por isso as ditaduras são suas piores inimigas. O mundo está ameaçado por ideologias fundamentalistas apoiadas na violência e na criminalização da pobreza. O Brasil está se defrontando com uma ideologia classista, conservadora e autoritária. É preciso resistir. A resistência está na defesa dos ameaçados, dos indefesos e da diversidade.
Ricos e poderosos costumam apelidar de comunista aqueles que defendem e promovem os mais pobres. Já no século XIX, Frederico Ozanam, fundador do movimento dos Vicentinos, alertava: “sacerdotes, não vos assusteis quando os ricos, irritados por vossas palavras e atitudes, vos tratarem de comunistas” (Carta Às pessoas de bem). Paulo VI foi chamado de comunista quando publicou Populorum Progressio (1967). Dom Helder Câmara foi chamado de comunista. “Quando dou de comer a um pobre, me chamam de santo. Mas quando pergunto por que razão os pobres não têm comida, me chamam de comunista” (Dom Hélder Câmara). Nem Papa Francisco escapou, porque o projeto de uma sociedade igualitária é cristão. “É estranho, mas quando eu falo de terra, teto e trabalho, dizem que o papa é comunista” (Papa Francisco - Discurso no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 2014).
De fato, muitas ideologias traduzem as angústias, os clamores e as esperanças de entidades, populações e pessoas reais. Ao desafiar a sociedade, elas provocam a mentalidade dos cristãos. Quem não levar a sério as novas tendências ideológicas é porque tem medo. O problema não está nas respostas, mas nas perguntas que elas suscitam. É preciso coragem para deixar-se interrogar por um mundo em desenvolvimento acelerado. Isso exige mudança de comportamento. Aceitar o desafio das novas ideologias sem medo de se sujar, sair da sacristia, desvencilhar-se da comodidade. Viva a diversidade de pensamento! Mudemos o rumo da história.
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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