sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Os complôs contra o papa legítimo

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Quando os inimigos da Igreja também são os 'desinformados'
É mito pensar que o papa, em todas as eras, sempre tenha sido uma figura amada por todos ou tenha exercido uma autoridade de caráter universalista.
É mito pensar que o papa, em todas as eras, sempre tenha sido uma figura amada por todos ou tenha exercido uma autoridade de caráter universalista. (Reuters)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

Papa Francisco, em audiência com o párocos da diocese de Roma na semana passada, anunciou, a portas fechadas, que canonizará papa Paulo VI ainda este ano. Nada mais sugestivo, afinal, o papa argentino já demonstrou querer levar a cabo a aplicação do Concílio Vaticano II. Por isso mesmo, Francisco faz questão de não esconder sua admiração pelos papas da última grande assembleia conciliar; basta lembrarmos que ele mesmo foi quem canonizou João XXIII em 2014, o pontífice que com seu Gaudet Mater Ecclesiae inaugurou um tempo novo para o catolicismo. E não para por aí. Nesta semana, na mesma ocasião, Bergoglio também anunciou que pretende levar adiante o processo de canonização de João Paulo I, que morreu de repente em 1978 e teve um dos pontificados mais curtos da história: 33 dias.

Se manifesta um fenômeno interessante desde a promulgação do dogma da infalibilidade papal de 1870: todos os papas dos séculos XIX e XX, desde Pio IX em diante, foram proclamados veneráveis, beatos ou santos, algo que não se observava com tanta frequência desde o século XI. O povo se tornou mais “devoto do papa” em relação aos períodos precedentes, nos quais a imagem do soberano do estado pontifício, detentor de um poder temporal, muitas vezes sobressaia sobre aquela do sucessor do apóstolo Pedro. É mito pensar que o papa, em todas as eras, sempre tenha sido uma figura amada por todos ou tenha exercido uma autoridade de caráter universalista. Cuidado com o anacronismo!

Se de um lado não amavam os papas do renascimento pela postura contrária ao estado de vida que abraçaram, na era contemporânea os papas não são amados por colocarem-se justamente contra o mundanismo outrora condenado. Pio IX, que hoje é usado como estandarte da causa de alguns grupos tradicionalistas chegou a ser chamado de herege - pasmem! - e a ser alvo de “campanhas de oração em prol da sua renúncia” por católicos com “excesso de piedade” no século XIX. Sabemos que Pio IX, o papa que testemunhou o fim do estado pontifício, jamais apoiou as ideias liberais, mas tentou, no início do seu pontificado, levar adiante uma série de reformas que considerava necessárias para o bem do estado, o que não agradou muito a cúria romana. Além disso, suas primeiras alocuções teriam oferecido um suposto apoio ao movimento de unificação italiana - apoio este rechaçado pelo próprio papa posteriormente. O estilo de seu governo, nesse início, é considerado por alguns especialistas uma espécie de “despotismo esclarecido”. Para se ter uma ideia, é dele esta afirmação quando era ainda bispo de Ímola, em 1833: “Odeio e abomino desde a minha medula óssea os pensamentos e as obras dos liberais; mas o fanatismo dos ‘papistas’ também não me dá simpatia. A via moderada cristã e não aquela diabólica que está na moda, seria a via que gostaria de tomar com a ajuda do Senhor”. Um papa moderado para a época, certamente não era algo bem visto. O contexto no qual Pio IX se inseriu, talvez o tenha motivado a assumir a postura intransigente que observamos depois. Na história da Igreja, o papa acaba agindo conforme “os sinais dos tempos”.

 Só para citar alguns exemplos, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI encontraram resistências na condução de seus governos, os quais foram interpretados por blocos que acreditam serem os intérpretes fiéis da doutrina ou da tradição. Na verdade, o povo acaba amando ou odiando um papa instrumentalizado por grupos, sem levar em consideração tudo aquilo que envolve um pontificado: a diplomacia, a relação com os estados, o estilo pessoal do romano pontífice, as reformas, o relacionamento com a cúria e o que a Igreja necessita para aquele momento específico. Meras leituras apaixonadas de pontificados que demonstram uma tremenda desonestidade intelectual. Agora é a vez de Francisco ser alvo de interpretações feitas por “memorizadores de encíclicas” que, por desconhecerem a história, acabam usando apenas as armas do moralismo contra a mentalidade dominante. Em tempos de acentuada descristianização do mundo, torna-se mais evidente que a promoção do encontro pessoal com Jesus Cristo - o mote do pontificado bergogliano -  talvez seja a via para derrotar eficazmente os verdadeiros inimigos da Igreja.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

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