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O cavaleiro cruzado representa sua fé?
Há muitos mitos sobre as cruzadas que acabaram povoando o imaginário católico. (AFP)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
A imagem do cavaleiro cruzado medieval tem assumido um espaço cada vez maior nas redes sociais. A encontramos em páginas pessoais, públicas e em grupos virtuais católicos. Há quem a ostente para demonstrar que “também luta pelos ideais cristãos e coloca-se em combate em nome da fé”. Mas será que os cavaleiros cruzados do século XI, que até o século XIII transformaram o quadro social da europa, tinham essa pura e reta intenção em todas as suas expedições militares? A resposta a essa pergunta o próprio papado tentou dar.
Em 12 de março de 2000, ano jubilar, João Paulo II pediu perdão por uma série de faltas que, segundo ele, foram cometidas ou tiveram participação da Igreja Católica, entre as quais elencou também as cruzadas. Esse pedido coroou uma série de afirmações do papa polonês que, desde a década de 80, criticava a atuação da guerra santa católica na baixa idade média. Em fevereiro de 1995, em discurso sobre Santa Catarina de Sena, ele chegou a ser ainda mais duro, dizendo que nem mesmo o zelo pela defesa dos lugares santos fez com que essa mística incentivasse o uso das armas. Já em 2014, em um mensagem aos jovens belgas, Papa Francisco afirmou: “Se você usa a fé como uma bandeira, como um cruzado, e insiste no proselitismo, isso não funciona”. E acrescentou em uma missa na casa Santa Marta: “A Igreja não precisa de cruzados, mas de semeadores da verdade”.
Primeira coisa: é preciso ter em mente que os cruzados medievais nunca tiveram a intenção de converter muçulmanos, ao contrário do que se difunde. Não fazia parte da mentalidade dominante essa missionariedade, com exceção dos germanos no processo de colonização do leste europeu, os únicos missionários do período. O único que teve essa intenção, não como cruzado, mas como um religioso de espírito cruzado, foi São Francisco de Assis que, como sabemos, encontrou-se com o sultão do Egito Malik Al-Kamil, inaugurando um período de mudança de mentalidade em relação à conquista armada. Posteriormente, Papa Inocêncio IV chega a incentivar a missão franciscana em substituição às expedições militares “religiosas”, considerando que era melhor evangelizar que conquistar.
A segunda coisa é que nem todas as cruzadas serviam para proteger os peregrinos cristãos em suas travessias rumo à Terra Santa, já que também elas tiveram um caráter expansionista e comercial. Quando Urbano II convocou a primeira cruzada em 1095, no sínodo de Clermont, a convocou em um contexto de Reconquista Espanhola, quando os muçulmanos começaram a ser expulsos da península ibérica através dos vários pactos entre o pontífice e os reis espanhóis. Nesse contexto, os cavaleiros tinham um impulso religioso latente e viam na expedição uma meta de peregrinação e purificação dos pecados, imbuídos pela espiritualidade da época. Na baixa idade média, o homem coloca-se sempre numa condição de “juízo final” por causa da interpretação teocrática que faz da própria história: depois da encarnação de Jesus, acreditava-se que aquela era a “última hora”. É por isso que é um risco tentar interpretar as cruzadas ou qualquer outro processo histórico com a mentalidade do presente.
Um outro mito é aquele de pensar que as cruzadas, no seu conjunto, foram uma luta implacável contra os muçulmanos em todas as suas fases. Para se ter uma ideia, durante a formação dos estados cruzados, houve até “fratricídios”: cristãos do ocidente que expulsaram cristãos do oriente de suas terras em nome do expansionismo das cruzadas. Vale lembrar que, na IV Cruzada, Constantinopla foi invadida, dando início ao Império latino do Oriente. Isso só serviu para reforçar ainda mais a separação entre Igreja do Oriente e Igreja do Ocidente provocada pelo cisma de 1054. Inclusive, os cruzados de Jerusalém chegaram a se aliar aos muçulmanos mamelucos para conter a avançada dos mongóis. Portanto, hora de pensar muito bem antes de transformar um Deus Vult em mote de zelo apostólico.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e bacharel em História da Igreja e bens culturais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e atualmente, mestranda em História da Igreja na mesma instituição. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
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