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A pesquisa histórica vai direto ao ponto mas sabe colocar-se em seu lugar.
The Frankenstein Chronicles, série inglesa que mistura fé, ciência e literatura. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*Após o triunfo da Beija-Flor no carnaval do Rio, usando o monstro da literatura como alegoria para todos os horrores praticados em nosso país, nada mais a propósito que assistir à série britânica The Frankenstein Chronicles.
No ano de 1827, em uma Londres enlameada e imersa na miséria, o policial John Marlott é encarregado de investigar um crime incomum. A descoberta de um corpo - montado e costurado com partes de oito crianças - às margens do Tâmisa é o ponto de partida da trama que nos obriga a pensar sobre a capilaridade da morte e de como convivemos com ela diariamente.
Com pouca ou nenhuma educação formal, baseado no QG da lendária força policial da Bow Street, o rude personagem vivido de maneira densa por Sean Bean (o Ned Stark, de Game of Thrones) está a milhas de distância da sofisticação de um Sherlock Holmes. Talvez, por isso mesmo, resulte tão real aos nossos olhos.
Atormentado pela perda da família e reagindo com alucinações a pílulas de mercúrio (obrigatórias para o tratamento médico de uma sífilis mal curada), o tom trágico de sua história nos toma de assalto já nos primeiros episódios, junto com a certeza de que nada ali pode acabar bem.
Ao contrário do que possamos pensar a partir do título, não se trata de obra de terror - a seara visitada pela série é outra, mais humana e sombria, bem diferente da fantasiosa Penny Dreadful, com seus vampiros, lobisomens e outras aberrações de tirar o sono. É certo que o monstro de Frankenstein não dará as caras, mas sim a ideia de monstruosidade que ele carrega: o desafiar da morte e dos extremos a que pode-se chegar em nome da ciência.
Com pistas demais, motivos demais e suspeitos demais, a investigação vai ganhando fascinante complexidade a cada novo passo dado pelo triste e persistente detetive. Na jornada, o personagem tropeça em figuras reais da época, como o poeta místico e pintor William Blake e até mesmo a própria mãe do monstro, a escritora Mary Shelley.
Com tantas peças no tabuleiro, seria fácil para os criadores do programa se perderem entre uma jogada e outra. Mas a partida avança sem escorregar enquanto vai discutindo fé, ciência, política e sociedade na mesma Inglaterra barrenta cuja vida precária do povo serviu de mote para Oliver Twist - porém, sem o colorido, a música ou a esperança que nos apresentaram as duas versões de cinema para o livro de Dickens.
A pesquisa histórica vai direto ao ponto mas sabe colocar-se em seu lugar, sem o exibicionismo de querer aparecer mais que o enredo - verdadeiro pecado mortal para filmes e programas de época e, infelizmente, um defeito mais que recorrente em produções do gênero.
Com tudo tão bem amarrado, os autores se dão ao direito de burilar até pequenos detalhes. É com raro prazer que lemos a inscrição na lápide da mulher e filha do personagem de Bean: "Durmam, para levantarem-se novamente" - um refraseado de versículo do Livro dos Salmos, comentário delicado sobre o tema central da atração.
A ousadia de beber do livro de Shelley para construir uma trama policial ecoa ainda três outras séries britânicas recentes, tão ou mais complexas: Whitechapel (que parte da mitologia em torno de Jack, o estripador, e de outros criminosos históricos da zona leste de Londres), Ripper Street (mais uma peça de época, sobre o cotidiano da delegacia que investigou os crimes do estripador, sem nunca ter conseguido prendê-lo) e Taboo (uma narrativa ambientada no início do século XIX onde a Companhia das Índias Ocidentais assume escancaradamente o papel de vilão que as empresas transnacionais desempenham até os dias de hoje), todas igualmente bem sucedidas.
Historicamente prolífica e criativa, a teledramaturgia inglesa tem na falta de condescendência com o público o grande trunfo para ter atingido o lugar de excelência que ocupa. Não faria mal se a TV brasileira em suas novelas e séries também decidisse seguir esta prerrogativa: ser menos didática, confiando mais na capacidade de entendimento e raciocínio do telespectador.
Ao abraçar o arquétipo do Prometeu moderno para contar sua fábula, The Frankenstein Chronicles une história, literatura, filosofia e a narrativa detetivesca para discutir a grande questão existencial da humanidade em todos os tempos.
O incontornável "para onde vamos?", esteio que sustenta a série e nos conecta a ela, porque força e angústia, é algo que pode movimentar ou paralisar qualquer um de nós.
De todos os monstros com que convivemos (interna e externamente), é esta incerteza o que pode acabar se transformando no maior deles.
(The Frankenstein Chronicles - primeira temporada disponível no Netflix)
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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