sexta-feira, 9 de março de 2018

A Igreja nunca disse que a terra era plana

domtotal.com
Os estragos causados pelas 'fake news' do passado.
O pensamento do astrônomo grego Tolomeu e do naturalista romano Plínio, que concebiam a terra como uma esfera já na Roma do século I e II, passou a ganhar força no século XV.
O pensamento do astrônomo grego Tolomeu e do naturalista romano Plínio, que concebiam a terra como uma esfera já na Roma do século I e II, passou a ganhar força no século XV. (Mapa de Tolomeu, 1482)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

Assim como muitos reclamam que, hoje em dia, dão mais peso aos memes de facebook -  as crias coloridas das fake news - que às análises de pessoas preparadas sobre determinados assuntos, adentrando um pouco na história, veremos que tantos boatos e más interpretações foram transformados em verdade em várias épocas; a diferença é que, neste caso, os meios para rebatê-los eram escassos e lentos. Uma dessas fake news, que ainda hoje impera no presente como uma constatação praticamente absoluta, é a famosa afirmação de que, durante a séculos, a Igreja teria sustentado a teoria de que a terra fosse plana e a tivesse difundido amplamente sobretudo na “idade das trevas”.

A verdade é que a visão teocrática do universo do monge egípcio Kosmas Indicopleustes, no século VI - desconhecido quase totalmente na idade média, diga-se de passagem - no século XIX foi usada como “prova” de que “o mapa-mundi cristão” feito por ele representaria o pensamento dominante de toda a Igreja. A partir dele, os mapas T-O (Terrae et Orbis) confeccionados de maneira bíblico-teológica eram difundidos mais por uma razão “catequética” e não usados em expedições e viagens marítimas, como interpretaram no presente. Certamente ninguém se aventuraria em busca de terras se soubesse que estaria fadado a cair num abismo. É só usarmos a lógica. Nos chamados portolanos italianos, manuais de navegação do século XIV, vemos um mapa da europa quase perfeito. 

O mito se tornou conhecido através de um romance publicado em 1828 - isso mesmo, um romance! - chamado The life and Voyages of Cristopher Columbus, de Washington Irving e de uma cosmologia dos padres da Igreja, de autoria do geógrafo Giovanni Marinelli, em 1882. Desde então, a fake new da “teoria arcaica sustentada pelo catolicismo” entrou nos principais manuais de história aos quais tivemos acesso no ensino fundamental.

Não é difícil rebater tal afirmação, basta elencarmos alguns dos principais autores da história da Igreja. Santo Agostinho (séculos IV-V), na Civitate Dei, e Gregório de Sevilha (séculos VI-VII), na sua De Natura Rerum já intuíam as dimensões da Europa, as quais são parecidas com as que consideramos hoje. Beda, o venerável (século VII) era consciente de que a formação das estrelas era diferente segundo o ponto de vista daquele que observava. E isso só era possível se houvesse a consciência da curvatura terrestre. Mais à frente, Gregório de Mertz em sua Image du Monde, já descreve o globo terrestre. Sem contar que, já na Roma do século I e II, o pensamento do astrônomo grego Tolomeu e do naturalista romano Plínio, que concebiam a terra como uma esfera, passou a ganhar força no século XV. Isso para não citar Cratere di Mallo, Teodosio Macrobio e tantos outros que já defendiam que a terra era redonda na idade antiga.

É de se destacar o caráter positivo da busca pela verdade impulsionada pelo iluminismo do século XVIII, porém não se pode negar que, em vez de corresponder a esse escopo, a revolução do conhecimento, em alguns casos, limitou-se a instigar a propaganda ofensiva em relação à Igreja Católica. Não foi à toa que Leão XIII decidiu abrir o arquivo secreto do Vaticano em 1815 de modo que os estudiosos considerados “não clericais” pudessem ter acesso às fontes.

Se por um lado as fake news do passado e do presente causam estragos, não é de se desconsiderar que a “seleção de fontes” para alimentar nossas ideias e paixões, em detrimento do amor autêntico à verdade, demonstra o quanto a desonestidade intelectual pode fazer mal inclusive ao cristianismo. Se para defender a Igreja ou repudiá-la se recorre a esse tipo de operação, se entra em contradição com a o zelo pela verdade em si, algo muito caro para o cristianismo e para as pessoas de bem que, mesmo não sendo cristãs, buscam respostas para dar sentido à sua existência.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

Um comentário:

  1. Achei seu artigo muito interessante, porém o nome correto é Ptolomeu e não Tolomeu.

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