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O cristianismo só tem razão de ser no serviço ao Reino, que corresponde ao encontro servidor com as pessoas, sobretudo àquelas que mais sofrem.
Ter os pés na lama e as mãos na carne é estar inserido no mundo, do modo como a encarnação do Filho de Deus nos inspira. (Peter Hershey/ Unsplash)
Por Felipe Magalhães Francisco*
O Papa Francisco, em seus pronunciamentos e escritos, usa sempre expressões-imagens muito marcantes para comunicar com profundidade sua mensagem. É o caso da fala que dá título a este artigo, que foi dita como convite-interpelação aos participantes do Encontro com os Movimentos Populares, ocorrido em outubro de 2014[1]. Se pararmos para observar, com atenção, tudo o que o Papa Bergoglio diz tem um caráter programático. É sempre um convite a toda a Igreja, ainda que suas falas e pronunciamentos sejam feitos em situações bastante concretas, tal como a citada interpelação que norteia nossa presente reflexão.
O cristianismo só tem razão de ser no serviço ao Reino, que corresponde ao encontro servidor com as pessoas, sobretudo àquelas que mais sofrem. Ter os pés na lama e as mãos na carne é cumprir essa missão irrenunciável do ser Igreja, Corpo de Cristo e sacramento do Reino: é estar inserido no mundo, do modo como a encarnação do Filho de Deus nos inspira. Tocar as feridas do sofrimento das pessoas e do mundo é vocação cristã fundamental, pois corresponde ao processo de configuração da vida de cada discípulo e discípula à vida de Jesus, que é o paradigma de desprendimento amoroso de si mesmo, para a dignificação dos outros.
Se os cristãos e cristãs querem assumir, verdadeiramente, a sua vocação batismal-crismal, será preciso assumir com real lealdade o Evangelho de Jesus. Para isso, é preciso desenclausurar-se dos espaços sagrados, celebrativos e, sobretudo, institucionais, para alcançar os lugares onde realmente é preciso estar, enlameando os pés na realidade e tocando, com afeto evangélico, a carne dos irmãos e irmãs. Tudo isso corresponde a correr o risco de perder a segurança institucional e doutrinal, que muitas vezes não está inserida no concreto da vida humana. É não extinguindo o Espírito (cf. 1Ts 5,19), que os cristãos e cristãs serão realmente corajosos e comprometidos com a causa do Reino, que é urgente.
Observando o atual cenário eclesial, podemos perceber um perigoso e vertiginoso crescimento de uma postura policialesca da fé e da religião. Temos enfrentado uma espécie de cruzada institucional, que tem causado grandes transtornos para o processo evangelizador da Igreja. Defensores e defensoras da doutrina, a todo custo, têm surgido de forma violenta, revelando o apego desmedido à instituição e um esvaziamento de uma espiritualidade verdadeiramente cristã. Quando o exercício da religião não toca a vida, cai-se numa atitude religiosa exteriorizante, que abre portas para uma vivência religiosa patológica: trata-se de uma crença esquizofrênica, porque dissociada da vida.
Tudo isso nos coloca, novamente, no âmago do programa pastoral de Francisco: voltar ao frescor do Evangelho e do apaixonamento por Jesus Cristo. Uma religião cristã que abre mão de olhar fixamente a pessoa de Jesus é uma religião que faliu, que ruiu por força do inferno, ainda que, institucionalmente, ela permaneça forte porque enrijecida. Combater o bom combate, tal como nos inspira Paulo, não significa portar bandeiras agressivas e invasivas, em nome da instituição e da doutrina. A doutrina é um serviço ao Evangelho e por isso precisa se encarnar na realidade do mundo e da história, lugares do despontar, por primeiro, do Reino de Deus.
Ter os pés na lama e as mãos na carne é tarefa sempre urgente e atual, sobretudo nos momentos em que os cristãos e cristãs se satisfazem com uma religiosidade que absolutiza o exterior da manifestação religiosa: não bastam batinas e véus. Converter-se pessoalmente e eclesialmente é convite cotidiano de todo batizado e batizada. Lembrar que somos barro e que não devemos ter medo de enlamear os nossos pés é um compromisso que fica aberto a cada um e cada uma de nós. Tocar a carne dos irmãos e irmãs é tocar o Crucificado, rompendo com todas as prescrições rituais e doutrinais que ficam esvaziadas de sentido, quando desprovidas do espírito evangélico. Que tenhamos a coragem de trilhar um caminho cheio de lama, que deixa os pés pesados, mas cheios do comprometimento com o Reino de Deus, verdadeiro sentido da pertença eclesial dos cristãos e cristãs.
[1] https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-francesco_20141028_incontro-mondiale-movimenti-popolari.pdf
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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