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Nas reuniões dessa família, dois ingredientes nunca faltam: a boa comida e as acaloradas contendas, que podem envolver duas ou mais delas.
No domingo de Páscoa, antes e depois do bacalhau, as quatro irmãs riram de casos antigos. (Reprodução)
Por Pablo Pires Fernandes*
A família sempre foi dominada pelas mulheres, em número, obviamente em gênero, e em grau se considerar o gênio e o caráter forte de todas. A matriarca, dona Úrsula, era filha de um italiano de Udine. Casou-se com Darcy, de antepassados portugueses e médico, profissão que os fez mudar de cidade algumas vezes até se fixarem em Belo Horizonte, no Bairro Serra, primeiro na Rua Bernardo Figueiredo, depois na Rua Caraça e, finalmente, na Rua Henrique Passini.
Em casa, ele impunha autoridade, mas, atrás da aparente sisudez, era homem afetuoso, de coração bom, que foi amolecendo mais explicitamente com o passar dos anos. Darcy passava o dia no consultório da Rua da Bahia atendendo gente humilde. Em casa, quem regia todos os pormenores era mesmo dona Úrsula.
Os dois garantiram às cinco filhas boa educação, ética e valores humanistas. Foi enorme a satisfação e o sentimento de dever cumprido ao ver todas elas na universidade. Levaram vida simples, mas foram muitos os prazeres compartilhados. Depois da morte da esposa, o doutor desistiu de viver. Num momento de angústia, desabafou a um neto: “Agora, vou beber e fumar até morrer”, como se pedisse desculpas pela decisão do lento suicídio. Foi ao encontro da amada menos de dois anos depois.
Apesar da formação católica, cada uma das filhas encontrou seu próprio modo de lidar com a fé. A mais velha se manteve católica. A segunda, embora tenha guardado resquícios, se distanciou da religião. A terceira se encontrou no budismo, a quarta no espiritismo e a caçula não se interessou de fato por nenhuma.
Algumas viveram fora de Belo Horizonte por mais ou menos tempo. Todas, no entanto, retornaram. A segunda filha morreu precocemente em um acidente. Hoje, as quatro filhas de doutor Darcy e dona Úrsula conservam, com gosto e afeto, o espírito de família. Em certos domingos, aniversários ou datas comemorativas, sempre se reúnem ao redor de mesa farta e conversas eloquentes.
Para elas, assim como para quase todos os netos, a comida é sagrada. Cada uma delas desenvolveu suas próprias especialidades. Longe de qualquer disputa ou competitividade, os encontros oferecem uma soma de delícias preparadas com esmero por diversas mãos em diferentes cozinhas. São raras as ocasiões em que a comida é motivo de controvérsia, embora haja registros de debates acalorados sobre o cardápio de Natal, umas defendendo o peru e outras o pernil.
Nas reuniões dessa família, dois ingredientes nunca faltam: a boa comida e as acaloradas contendas, que podem envolver duas ou mais delas. São discussões veementes, com vozes exaltadas defendendo um ponto de vista e gestos frenéticos e enfáticos, sem dúvida um reflexo das raízes italianas. Os motivos das discórdias variam: um episódio do passado cuja memória guarda uma versão particular, a opinião sobre o caráter de algum conhecido ou fatos bem mais prosaicos. Política, futebol e religião, porém, nunca foram estopim para os verborrágicos embates.
No domingo de Páscoa, antes e depois do bacalhau, as quatro irmãs riram de casos antigos, se condoeram com as más notícias sobre a saúde da prima, teceram elogios para todos os pratos degustados e, claro, se envolveram em uma exaltada rusga. Para quem não conhece, pode parecer estranho. No entanto, as controvérsias sempre acabam em abraços e beijos sinceros. Muitas vezes, elas mal se lembram da causa da discórdia. As brigas das quatro irmãs são, na verdade, uma maneira bastante particular de expressar o afeto mútuo. Discutir e debater, neste caso, significa dizer “eu te amo”.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.
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