quinta-feira, 21 de junho de 2018

Contra Aquarius e gaiolas, a 'cultura do encontro'

domtotal.com
Um novo tipo de sociedade se desenvolveu em torno do consumismo, núcleo da vida.
O navio de resgate Aquarius.
O navio de resgate Aquarius. (Tony Gentile/ Reuters)
Por Élio Gasda*

As frequentes mensões, os gestos, as palavras do papa Francisco, por todo canto que passa, fortalecem sua insistência na “cultura do encontro”, na mudança cultural. Essa é uma das marcas do seu pontificado. Mudança que se faz necessária dentro da Igreja, entre os cristãos, entre as diferentes religiões, na vida social e entre as nações.

Um novo tipo de sociedade se desenvolveu em torno do consumismo, núcleo da vida. Tudo está sujeito à lógica de um mercado sedutor. Ostentar, embelezar-se, curtir, se tornaram deveres. A cultura materialista dissolve o ser humano, o degrada convertendo-o em um meio de obter recursos para consumir e, desse modo, consumir-se. Essa “cultura do naufrágio” derruba os fundamentos e deixa o indivíduo fragilizado, destrói o sentido da vida. Uma cultura que o mergulha na incerteza, espalha mediocridade e cinismo. Seu subjetivismo egoísta estabelece o reino do “vale tudo” onde certas pessoas “nada valem”, tolerância zero com elas.

A indiferença, a superficialidade, uma espécie de rejeição levam a não ver o outro como um irmão sempre bem-vindo. Ao contrário, o descarta do horizonte existencial, o transforma em adversário. Uma mentalidade que não respeita nada nem ninguém. Uma cultura que despreza outras e destrói os vínculos autênticos, acaba desintegrando a sociedade, alimentando o ódio e gerando violência. Os últimos acontecimentos mostram as conseqüências crués dessa mentalidade. Trava-se, em diferentes áreas do planeta, uma guerra contra os descartados com modalidades e intensidade variadas.

Imigrantes são criminalizados! Devem ser presos e deportados imediatamente. Crianças não podem ser presas. Então, são arrancadas dos braços dos pais e amontoadas em armazéns. No Texas, centenas delas foram enfiadas em gaiolas de metal, com água, batatas fritas e grandes folhas de papel que servem de cobertores. Muitas ainda de colo choram descontroladamente, se debatendo contra o chão em desespero. Há mais de 2.000 crianças nessas jaulas, de acordo com Secretaria de Saúde e Serviços Sociais. A superlotação é um dos efeitos da política de tolerância zero assumida por Trump contra a imigração. Perturbador.

A Itália negou atracar Aquarius, navio com 629 imigrantes. Outros 790 estão a espera de indicação de um porto para desembarcar. Alguns estão doentes, têm ferimentos de bala, muitos têm sarna e febre, exaustos e traumatizados pela dura travessia. Há sete mulheres grávidas e 123 crianças que viajam sozinhas. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, permitiu que Aquarius atraque na Espanha. “É nossa obrigação evitar uma catástrofe humanitária”, disse o socialista. Em 2018 já são mais de 750 mortos no Mediterrâneo.

Diante desta "cultura do naufrágio" é necessário gerar uma "cultura de encontro" em que a pessoa humana ocupa o centro das ações e seja valorizada pelo que é; uma cultura fiel à realidade e não ludibriada pela aparência. Uma cultura não da neutralidade e indiferença, mas de compromisso e respeito por todos os seres humanos, especialmente os mais pobres e descartados pela sociedade de consumo e da ostentação. A “cultura do encontro” requer relações humanas não light ou líquidas, mas assentadas em valores como a justiça e o bem comum. É o respeito pela dignidade do outro o primeiro passo. A solidariedade significa outra etapa em direção ao encontro do outro descartado. A “cultura do encontro” privilegia o diálogo que leva a paz (Evangelii gaudium, n. 188). O outro sempre nos enriquece como seres humanos.

A “cultura do encontro” recorda a presença de Deus que habita no outro. É a socialização, a institucionalização do amor ao próximo. Rostos e nomes são traços daquele Deus que a sociedade opulenta e alienada pelo consumo desenfreado descartou. Deus engaiolado e a deriva para que as minorias poderosas possam esbanjar a riqueza de maneira iníqua, enquanto a crescente maioria é expulsa e necessita refugiar-se nas periferias descartadas.

 A expressão “descalçar as sandálias diante da terra sagrada do outro” nunca foi tão atual. “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). As sandálias são descalçadas diante do Deus vivo que se faz presente nesta terra sagrada que é o outro. Somos todos peregrinos e estrangeiros neste mundo. Por isso, “devemos confiar o coração ao nosso companheiro de viagem e olhar em primeiro lugar para o que buscamos juntos, a paz” (Evangelii Gaudium, n.244). Salvar vidas é um ato de humanidade que não pode ser objeto de negociações políticas ou disputas entre governos. Na fronteira e no mar há inocentes em busca de salvação. A imigração não é um crime. Crime é impedir que as pessoas vivam. Que os rejeitados de Aquarius e o choro das crianças engaioladas não deixe passar desapercebido mais um Dia Internacional do Refugiado (20/06) e sirva para reagir contra mais esta guerra contra a espécie humana.

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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