quarta-feira, 13 de junho de 2018

Processos episcopais podem apontar para uma nova fase na crise de abuso sexual da igreja

domtotal.com
A Igreja 'não percebeu que os tempos e as atitudes estão mudando e em muitos países seus líderes não são mais vistos com direitos ou privilégios especiais'.
O arcebispo Philip Wilson, de Adelaide, na Austrália, chega ao tribunal local de Newcastle em 9 de abril.
O arcebispo Philip Wilson, de Adelaide, na Austrália, chega ao tribunal local de Newcastle em 9 de abril. (CNS/Darren Pateman, EPA)

O Papa Francisco tem lidado nos últimos meses com o que parece ser uma saga interminável da crise dos abusos sexuais do clero católico no Chile.

Depois de ser criticado por dizer que vítimas de abuso cometeram "calúnias" durante sua visita ao país em janeiro, o Papa já admitiu ter cometido "sérios erros", encontrou-se com vítimas chilenas em Roma e recebeu ofertas de renúncia da maioria dos bispos do país em um encontro de três dias no Vaticano.

Mas se a resposta de Francisco aos abusos do clero no Chile parece interminável, desenvolvimentos recentes em todo o mundo indicam que um exame de como a Igreja Católica global tem tratado - ou abusado – o tema do abuso sexual está apenas começando a aumentar.

Esses desenvolvimentos incluem: dois bispos da igreja sendo processados na Austrália, um cardeal local e o chefe doutrinal do Vaticano sendo condenado a julgamento na França, uma aproximação policial na chancelaria da diocese de Michigan, um relatório do júri em seis dioceses na Pensilvânia e em todo o país, assim como inquéritos na Austrália, na Escócia e na Inglaterra.

A ladainha de eventos levou alguns que acompanharam de perto a reação da igreja frente ao abuso para especular que podemos estar entrando em uma nova fase da crise que já tem décadas - uma em que as autoridades locais e nacionais nos países do mundo estão mostrando menos hesitação em pedirem contas aos líderes da igreja.

"Os processos de membros da hierarquia que não teriam acontecido há uma década indicam que estamos em uma nova era", disse Marci Hamilton, um conhecido advogado e defensor dos direitos das crianças.

"Antes que o escândalo se tornasse público, os promotores frequentemente achavam que não seria do interesse deles ou dos interesses de qualquer pessoa processar os padres ou as hierarquias", disse Hamilton, CEO do Think Tank CHILD USA. "Mas quanto mais fatos surgem... mais os promotores mudam seus cálculos".

Marie Collins, uma irlandesa, sobrevivente de abusos que renunciou à comissão papal de abuso, criada pelo Papa Francisco em 2017, devido à frustração com as autoridades do Vaticano, disse simplesmente: "Estamos em um novo ponto".

"Quanto mais a igreja está se recusando a responsabilizar seus bispos e seus representantes, mais os poderes seculares tomarão ações para enfrentar o problema", disse ela.

Os processos judiciais de maior destaque das figuras da igreja vieram da Austrália.

O cardeal George Pell, um australiano indicado por Francisco para liderar o novo escritório financeiro do Vaticano em 2014, retornou ao seu país natal em junho de 2017, depois de ser acusado de alegações, de longo tempo, de abuso.

Em 1º de maio, a magistrada Belinda Wallington ordenou que Pell fosse julgado por algumas das acusações, às quais o cardeal se declarou inocente.

O arcebispo Philip Wilson, que lidera a igreja no centro de Adelaide, no sul da Austrália, foi considerado culpado no dia 22 de maio por negligenciar relatos de abuso sexual de clérigos quando ainda era padre nos anos 70.

Wilson ficou fora da gestão do dia a dia de sua arquidiocese em 25 de maio; o Papa nomeou um administrador apostólico para assumir o cargo no dia 3 de junho.

Francis Sullivan, que liderou a resposta da Igreja Católica Australiana a um inquérito nacional de cinco anos sobre abuso infantil institucional, disse que "a atmosfera em torno do escrutínio da igreja é muito mais rigorosa agora e há menos tolerância das fraquezas da igreja".

"Autoridades do governo, policiais e outros estão demonstrando uma maior preparação para, basicamente, responsabilizar a Igreja", disse Sullivan, ex-CEO do Conselho da Verdade, Justiça e Cura da Austrália.

Na França, o cardeal de Lyon, Philippe Barbarin, foi intimado para um julgamento em janeiro próximo, ao lado do cardeal designado Luis Ladaria, chefe da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, e cinco outros oficiais da igreja. Eles são acusados de não relatar às autoridades o conhecimento de abuso perpetrado por um padre.

Anne Barrett Doyle, codiretora do site de acompanhamento de abusos BishopAccountability.org, disse que os casos australianos e franceses mostram que "até mesmo os funcionários mais importantes da Igreja estão sendo tratados como concidadãos".

"A separação da igreja e do estado não significa mais que os religiosos possam fazer as coisas com impunidade", disse ela. "Há uma noção de prestação de contas que é assumida e acho que é realmente apropriada".

"Promotores ... cada vez mais estão tratando os bispos e outros líderes da igreja como cidadãos, e não como uma espécie intocável", acrescentou.

Concentrados na estrutura da igreja, sua cultura

Além dos processos, vários governos nacionais instituíram comissões especiais para investigar como as instituições têm lidado com alegações de abuso sexual infantil. O mais notável também vem da Austrália, onde a Comissão Real, que começou em 2012, encerrou seu trabalho em dezembro.

A comissão concluiu com a publicação de um relatório final de 17 volumes que incluiu 189 recomendações para entender o abuso, manter as crianças seguras e abordar determinadas instituições religiosas e sociais.

As 21 recomendações do grupo para a Igreja Católica abordaram uma vasta gama de assuntos, desde como os bispos são nomeados, até a maneira como a lei canônica designa a idade dos menores, até a prática da igreja de celibato para os sacerdotes.

Sullivan, que havia servido 14 anos como CEO da Catholic Health Australia antes de assumir o papel de liderar a resposta da igreja à comissão, disse que a investigação queria indicar "áreas de preocupação" sobre a estrutura da Igreja Católica.

"O que diz mais amplamente é que... as questões estruturais-culturais da igreja são o lugar onde se encontra o coração do problema do abuso", disse Sullivan. "Não é sobre as maças podres na cesta, é o fato de que a cesta tolera as maçãs podres".

"Por que houve uma permissividade na cultura?" Com estas palavras, Sullivan resumiu a linha de pesquisa da comissão. "Por que houve uma espécie de hesitação, se não uma aversão, em examinar as profundezas do clericalismo?"

Barrett Doyle, cuja organização documentou registros de abusos em dioceses em todo o mundo, chamou as recomendações da comissão de "muito apropriadas".

"Eu acho que eles estão tentando manter melhor a igreja em seu devido lugar", disse ela. "As religiões são comunidades de crentes e frente a sua conduta... não deve ser permitido fazer nenhum mal. E se eles têm certas tradições ou regras que prejudicam, então a sociedade secular tem que barrar".

Duas outras investigações em todo o país que podem envolver questões sobre o tratamento da Igreja Católica estão ocorrendo agora.

Na Inglaterra, relatos sugeriram que o cardeal de Westminster, Vincent Nichols, possa ser chamado para prestar depoimento sobre o Inquérito Independente sobre Abuso Sexual Infantil, criado pelo governo britânico em 2014, após as revelações de abuso por Jimmy Savile.

Na Escócia, espera-se que o arcebispo aposentado Mario Conti de Glasgow testemunhe na investigação sobre o abuso infantil na Escócia, criada pelo governo escocês em 2015.

Enquanto isso, nos EUA, a Procuradoria Geral da Pensilvânia está concluindo uma investigação sobre seis das oito dioceses do estado. Espera-se que o relatório final do inquérito, com cerca de 800 páginas, seja divulgado dentro de poucas semanas.

Hamilton, que também é Professora de Prática da Fox na Universidade da Pensilvânia, disse acreditar que a decisão das autoridades australianas de processar Pell influenciou os promotores dos EUA a vigiar as autoridades da Igreja de forma mais agressiva.

"Eu sinceramente acho que a acusação do Cardeal Pell... mudou a opinião dos promotores aqui nos Estados Unidos de que realmente não há um perigo político em processar [os bispos]", disse Hamilton.

"Mas também acho que é essa crescente onda de compreensão", continuou ela. "Quanto mais as pessoas entenderem a forma e a dimensão da crise, maior a disposição dos promotores de justiça de estender seus recursos e pedir contas da hierarquia".

Apontando as revelações de abusos do ex-assistente de seleção de futebol americano Jerry Sandusky, da Universidade do Estado da Pensilvânia, e do ex-médico da equipe de Ginástica dos EUA, Larry Nassar, da Michigan State University, Hamilton disse:

"Eu acho que a igreja agora tem que ser entendida no contexto de todas as outras organizações com esses problemas. E precisa entender que realmente não é especial neste contexto".

Sullivan disse que os líderes da igreja deveriam ser investigados sobre sua conduta por autoridades externas.

"Os dias da igreja que se investiga a si mesma acabaram", disse ele. "Porque não pode fazer isso. Assim não é possível ter uma visão objetiva".

Ele disse que o que mais o chamou a atenção na linha de pesquisa da comissão australiana foi que foi além do que aconteceu com a resposta da igreja ao abuso e o porquê isso aconteceu.

"Em última análise, as pessoas sempre se perguntam por que", disse Sullivan. "É por isso que acho que deveriam preocupar muito mais as considerações das pessoas no Vaticano".

"Não se trata apenas de prevenção", disse ele. "A prevenção é apenas uma camada. É sobre criar uma cultura saudável. A igreja precisa ser uma cultura saudável onde as pessoas possam florescer".

Collins, que também é fundadora de uma organização britânica que ajuda os sobreviventes de abuso e trabalha com agências para proteger crianças, disse que a Igreja "não percebeu que os tempos e as atitudes estão mudando e em muitos países seus líderes não são mais vistos com direitos ou privilégios especiais".

 "Ao não tomar medidas firmes contra os homens que protegem os abusadores, eles deixam a coisa aberta para os outros intervirem e fazerem isso por eles", disse ela.


National Catholic Reporter - Tradução: Ramón Lara

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