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A seletividade de violações a serem problematizadas e objeto de repúdio perseverante na sociedade passa pelo culturalismo.
Todos já ouviram o caso de Madeleine. Mas quantos se lembram de um nome que seja das centenas de meninas nigerianas sequestradas pelo Boko Haram? (AFP)
Por Marcelo Kokke*
No dia 28 de maio de 2018, a Polícia Civil do Tocantins efetivou prisão de padrasto e da própria mãe de uma adolescente de 13 anos, vítima de abusos sexuais. O caso ocorreu na cidade de Tocantinópolis. No dia 2 de julho de 2018, um jovem de 24 anos foi preso por assassinar a namorada, de 19 anos, na cidade de Barra do Piraí, no estado do Rio de Janeiro. Ainda em julho de 2018, a professora da UnB, Débora Diniz, é perseguida e ameaçada de morte por suas posições e argumentos relativos à descriminalização do aborto.
Nenhum desses casos ganhou repercussão tão acentuada ou crítica na sociedade e na imprensa. Ao menos, não recebeu o mesmo, ou quiçá próximo, tratamento ao evento relacionado à conduta de alguns brasileiros no caso envolvendo mulher russa, na Copa do Mundo. É evidente o caráter grosseiro, abusivo e marcado por uma expressão patriarcal no caso da Copa. Não é esse o ponto que pretendo abordar no texto. O ponto que pretendo abordar é avaliar, sob o ponto de vista da teoria crítica e ótica foucaultiana, a seletividade de tratamento de temas e do desnível de repercussão na mídia e na sociedade em face de bens jurídicos relacionados a uma mesma demanda por reconhecimento.
A pergunta que se faz é voltada a questionar a causa de uma violação de reconhecimento, com afetação na esfera jurídica e social, explicitamente mais grave ser mitigada ou sufocada por uma ação, embora censurável, mas com caráter de violação em dimensão extremamente inferior. Stuart Mill, ainda no século XIX, já preconizava que o futuro guardava o risco de uma ameaça de censura e silenciamento opressivo, não do Estado, mas da sociedade.
Esse silenciamento se faz hoje pela reatividade em face de posturas voltadas antes de tudo para buscar compreender e dissecar o fenômeno da indignação social em face de determinados atos ou condutas manifestadas no espaço público. Ainda em 2011, quando ingressei na campanha Homens Unidos pelo Fim da Violência contra as Mulheres, já levantava a crítica aqui explicitada. Há uma falha teórica e prática na tentativa de leitura e interpretação de fenômenos sociais e práticas de conduta opressivas que neguem o conjunto total de relações de reconhecimento e não reconhecimento na sociedade.
Isso não significa negar violações. Mas significa articular criticamente o porquê determinadas violações ganham maior visibilidade em relação a outras. A seletividade de violações a serem problematizadas e objeto de repúdio perseverante na sociedade passa pelo culturalismo. Isso significa que não é possível deixar de interpretar níveis de violência contra a mulher sem levantar ao menos dois aspectos proeminentes. Em que medida o perfil e enquadramento social da pessoa repercute na seletividade de indignação pela sociedade? Em que medida a indignação e repúdio se estabelecem como uma proteção simbólica, mas conivente com opressões que articulem problemas sociais de órbita moral abstrata envolvendo direitos das mulheres?
As questões atravessam um sério problema envolvendo a sociedade contemporânea. A progressiva perda da capacidade de pensamento abstrato. Isso é expresso nas reiteradas vezes em que, seja em sala de aula, seja em outros auditórios, demandam-se “exemplos” para poder captar determinado conceito ou ideia crítica. E a perda de capacidade construtiva de conceitos gera uma lacuna na capacidade compreensiva do quadro fático para com bases normativas de avaliação da realidade. O problema do visível, como se absorve em Merleau-Ponty, é a carga de invisibilidade que ele carrega.
O filósofo político Achille Mbembe, de Camarões, labora um relevante conceito para enfrentamento do tema aqui proposto. Necropolítica. A base de pesquisa de Mbembe está em alicerce crítico e ligado ao biopoder, proclamando o autor que pela necropolítica as vidas possuem valor diferente, embora abstratamente a sociedade tenda a negar o que a rotina da vida escancara. Há uma articulação interna de poder e resignação que permite uma seletividade quanto a vítimas, ao que se legitima que algumas vidas possuem mais valor de proteção do que outras. A necropolítica trabalha com a angustiante afirmação de que tanto o Estado quanto a sociedade não somente admitem mas naturalizam e deixam de perpetrar maior nível de indignação ou empatia quando dado grupo de pessoas já é admitido como “vítima aceitável”. Há uma implícita ótica social voltada para o deixar morrer ou deixar sofrer.
O desaparecimento de uma criança europeia, loira, de olhos claros, em um local de classe alta, repercute em intensidade. Todos já ouviram o caso de Madeleine. Mas quantos se lembram de um nome que seja das centenas de meninas nigerianas sequestradas pelo Boko Haram? Algo é sintomático em relação a isso. Em pesquisa no Google, os termos “meninas sequestradas Boko Haram” alcançam 98.000 resultados. A pesquisa “caso Madeleine” alcança 4.810.000 resultados.
A esfera pública é reativa em seletividade na proteção em face da negação do reconhecimento, em face da violação. A categorização social, a localização espacial da pessoa, o biotipo da vítima ou pessoa oprimida, o espelhamento da vítima em seu perfil e ideias para com o senso comum da sociedade, e principalmente a admissão de que determinados grupos sociais se encontram em um irremediável estado de exceção contra o qual é aceitável a situação projetada de violência são composições críticas para a compreensão da seletividade da indignação.
Sustento que a perspectiva de diagnóstico construída pode ser aplicada aos casos de indignação seletiva e visibilidade acima elencados. Não se está aqui a mitigar ou ignorar violações ou atos que são exemplificativos de posturas opressivas em face da mulher. Está-se a explicitar que há níveis de invisibilidade na violência disseminada em grande parte dos casos que contrasta com níveis de supervisibilidade projetados em outros. Vítimas da periferia, violações cotidianas em seus mais diversos níveis a afetar as mulheres recaem sob a perspectiva da necropolítica na afirmação de parcelas aceitáveis de violação.
A manifestação misógina opressiva ocorrida na Rússia não repercutiu per si. Repercutiu também por ter ocorrido durante um evento internacional no qual a sociedade brasileira vê sua imagem projetada a partir da conduta de alguns indivíduos. Mais, os indivíduos não são punidos socialmente pelo que fizeram em si. Há, tristemente, incomensuráveis casos de violência muito superiores e extremos que passam em invisibilidade. A censura advém também da indignação socialmente compreendida como projeção de uma imagem negativa do Brasil em si que afeta a sociedade como um todo.
Além da localização e categorização, é inegável, sob o referencial teórico em sustentação, que o fato da violência ter se projetado sobre uma mulher europeia e loira não pode ser desconsiderado para fins de componente subconsciente da repercussão social. A componente da vítima “aceitável” ou “posta em expectativa social” inconsciente não pode ser menosprezado. E o fenótipo da mulher russa vitimada confronta-se com esse componente subconsciente. Como salienta Jessé de Souza, a carga histórica da herança escravocrata não pode ser subestimada na sociedade brasileira.
Lado outro, não se pode desconsiderar o componente midiático. Alavancar manchetes que repercutam o abuso ligado ao sexismo em um cenário de Copa do Mundo atrai muito mais atenção e despertar de grupos e movimentos sociais, além da coletividade como um todo, do que a banalizada violência sangrenta de cada dia. Há que se lembrar da crítica desenvolvida por Noam Chomsky, reportagens e debates não são somente vias de informação na contemporaneidade, são também produto de mercado. O risco de cooptação de causas e bandeiras legítimas para transformá-los em produtos de audiência não pode ser desconsiderado.
Mas há um outro fator relativo à violência contra a mulher que é posto em invisibilidade. Proteção em face de violências verbais, em face de estigmas de negação de reconhecimento, acompanhada de indignação social pode se traduzir em tutela simbólica e superficial quando comparadas a tematizações mais profundas e afetas a políticas públicas. O espelhamento da vítima em seu perfil e ideias para com o senso comum da sociedade é um traço determinante na visibilidade da violência.
Os atos de perseguição em face da professora da UnB, em razão de suas ideias e perspectiva de tutela dos direitos da mulher, repercutem em muito mais intensa e drástica expressão diante do status quo do que frases de um grupo que manifesta a misogenia durante a Copa do Mundo. Mas repercussão diante do status quo não significa repercussão social na opinião pública. Há uma seletividade de indignação segundo o traço característico do questionamento da arquitetura social de bases do biopoder.
O espelhamento significa que se a vítima não abraça um perfil de ideias e exercício de papel social que possa ser apreciado em simpatia pela opinião pública ou parte dela, ou seja, se a situação não deixa de forma tão patente a perspectiva do “e se fosse eu”, o nível de indignação arrefece e a violência cai em invisibilidade. A solidariedade em favor da vítima irá fluir de acordo pela conveniência do senso comum se ver nela espelhado, e não em razão da dignidade em si a ser protegida. A confrontação deixa de ser em favor de uma ética de emancipação e passa a ser voltada para uma estratégia de autoproteção, fato que repercute muito do ponto de vista prático. Exemplificativo disso é o constante uso nas redes sociais do argumento “e se fosse você”, “e se fosse sua filha”, “e se fosse sua irmã”.
A indignação é seletiva. Deveria ser? Evidentemente que não. Violações de diversos níveis devem ser desconsideradas por este motivo? Evidentemente que não. Mas é preciso ter em conta que a realidade em que se vive projeta no subconsciente crivos de apreciação valorativa que permanecem inarticulados, inclusive sob uma persistente negação. A seletividade e supervisibilidade abrem espaços para de um lado punições sociais e jurídicas excessivas, a matriz sociológica do linchamento está aqui alinhada, e por consequência projeta e obscurece níveis de invisibilidade. O estereótipo deixa de ser abordado em suas amplas componentes. Paralelamente, a invisibilidade naturaliza a violação, proclama e faz por aceitar o estado de exceção, naturaliza feixes sociais e culturais como baixas aceitáveis assim como a própria impunidade.
*Marcelo Kokke é pós-doutor em Direito Público Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (ES), mestre e eoutor em Direito, especialista em Processo Constitucional, procurador federal da Advocacia-Geral da União e professor de Direito Constitucional da Dom Helder Escola de Direito.
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