domingo, 16 de dezembro de 2018

70 anos depois

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Se a data final é tão discutida, o que dizer das barbáries cometidas por todos os lados envolvidos nessa guerra?
Devemos então torcer para que estes não se intimidem, nem se entreguem ao canto das sereias.
Devemos então torcer para que estes não se intimidem, nem se
 entreguem ao canto das sereias. (Reprodução)
Por Evaldo D' Assumpção*

A “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, proclamada em 10 de dezembro de 1948, completou 70 anos de sua promulgação pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). Quem a esboçou foi o canadense John Peters Humphrey, tendo recebido colaborações de personalidades de numerosos países. Sua inspiração foi a memória, ainda viva, de todas as atrocidades cometidas durante a 2ª Grande Guerra, cuja data exata de seu término, ainda hoje é controvertida. Para alguns historiadores, ela acabou em 8 de maio de 1945, quando foi acordado o cessar-fogo entre americanos e alemães, com a rendição da Alemanha. Para outros, foi com a assinatura do armistício e rendição do Japão, em 14 de agosto desse mesmo ano, depois dos massacres atômicos de Hiroshima e Nagasaki, respectivamente em 6 e 9 de agosto. Mas, curiosamente, o tratado de paz com o Japão só foi assinado em 1951, e a ratificação do tratado com a Alemanha, somente foi assinado em 1990.

Se a data final é tão discutida, o que dizer das barbáries cometidas por todos os lados envolvidos nessa guerra? Sabemos que somente são ressaltadas, as atribuídas aos vencidos. E as outras? Como disse George Orwell, “A história é escrita pelos vencedores”. Portanto, ai dos vencidos! Mas, o que importa foi o reconhecimento dos males feitos, quase sempre contra populações civis, sem responsabilidade pelo conflito. Esse reconhecimento deu origem à referida Declaração, três anos depois, estabelecendo alguns parâmetros para definir os direitos humanos em todo o mundo. Contudo, não é um documento de obrigatoriedade legal, apesar de ser constantemente referido por juristas de toda parte. Hoje é considerado o documento mais traduzido no mundo, já tendo 508 traduções segundo o Livro Guinness de Recordes Mundiais.

Relendo esse famoso e muito citado documento – apesar de tão pouco respeitado –, fico imaginando por que, sendo um texto aparentemente fundamental para a justiça e a paz mundial, é quase uma “letra morta” para tantos países, especialmente os seus signatários. Quem duvidar, leia os jornais, assista os noticiários de TV, e irá constatar o quanto ela é desprezada. E me vem a explicação que sempre expunha em minhas aulas e palestras sobre ética. Lendo cuidadosamente o texto da declaração, contam-se 40 citações onde a palavra “direito” está grafada, explicitando claramente o “direito” da pessoa, além de cinco onde a palavra “direito” não está escrita, mas o sentido do texto, a ele se refere. Em contrapartida, a palavra “dever” está grafada somente duas vezes, existindo cinco citações onde ele é de leve explicitado, mas sem o uso da palavra que o define.

Até hoje, quando recorrem a essa Declaração, diversos autores, preletores e profissionais da imprensa dão enorme ênfase aos DIREITOS ali claramente especificados, esquecendo-se ou menosprezando os DEVERES que ali não foram igualmente grafados. Por isso, sempre que tenho oportunidade procuro fazer um contraponto a essa postura, à qual eu atribuo grande parte dos desmandos que observamos em nossa sociedade e em diversos países ao redor do mundo.

Isso porque não consigo vislumbrar qualquer “direito” que não tenha, como complemento essencial e necessário, o “dever” que o gera, e ou o sustenta. Imagino então que, onde quase só existem direitos, e praticamente nada de deveres, os direitos raramente serão respeitados, pois são os deveres que os geram e os fortalecem, legitimando-os. Se a proposta dessa Declaração é estabelecer normas de comportamento, seja para indivíduos, seja para uma coletividade, os deveres devem sempre ser explicitados e destacados, para que não reste qualquer dúvida. Especialmente levando-se em conta que é próprio do ser humano ter fascinação pelos seus direitos, e uma certa aversão pelos seus deveres. Por isso digo que direitos e deveres são como irmãos siameses ligados por órgãos vitais: jamais podem ser separados, sem que um morra.

Aplicando-se esses conceitos ao passado recente do Brasil, entenderemos o porquê, da maioria dos trágicos acontecimentos que quase levaram o país à bancarrota, só não o fazendo graças à sua enorme riqueza natural. Nessa última década e meia, com muito mais intensidade, ganância, e apetite insaciável, grande parte dos ocupantes dos três poderes, especialmente os que tinham mais poderes nas mãos, seguiram rigorosamente uma cartilha que só tem “direitos”, ignorando totalmente os “deveres” que os devia acompanhar, mas que não costumam ser explicitados de forma inequívoca. Sentiram-se então eles, no “direito” de usufruir sem peias, das benesses dos cargos, negociando a mancheias as prerrogativas que achavam possuir. Até que apareceram pessoas rigorosas cumpridoras dos deveres, iniciando e expandindo largamente um serviço de “lavanderia”, que deu no que deu. E é também por isso que, ao surgir alguém comprometendo-se a cobrar deveres, e exercê-los com o rigor que deve ser feito, garantindo assim os direitos de todos, muitos dos mal acostumados estão tremendo nas bases, tudo fazendo para atrapalha-los nessa hercúlea tarefa. Devemos então torcer para que estes não se intimidem, nem se entreguem ao canto das sereias, como o fizeram aqueles que os antecederam, só enxergando direitos, e amargando agora as consequências de suas inconsequências.

*Evaldo D' Assumpção é médico e escritor

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