quinta-feira, 28 de março de 2019

África, o grito da humanidade

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A injustiça, a desigualdade mundial, a exploração, a exclusão e a morte dos mais pobres, são os principais problemas da humanidade.
"Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando mais cruel a escravidão dos oprimidos". Na foto, uma cena na República Democrática do Congo. (John Wessels/AFP)
Por Élio Gasda*

É diante de uma África arrasada, que a Igreja recorda essa semana, 52 anos da encíclica Populorum Progressio (PP). Seu autor, Paulo VI, criador da Comissão Pontifícia de Justiça e Paz, foi canonizado em 2018. Ainda cardeal, Montini fez duas viagens, uma à América Latina (1960) outra à África (1962) que o puseram em contato com os problemas que oprimem os povos destes continentes. Foi o primeiro pontífice a visitar a África: Uganda, em 1969.

Em 1970 Paulo VI encontrou-se no Vaticano com os líderes dos movimentos de libertação: Agostinho Neto dirigente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Marcelino dos Santos representante da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde). Pela primeira vez um papa recebia líderes comunistas à frente de movimentos populares. Os três chamaram a atenção para os sofrimentos dos seus povos e as causas das lutas por libertação. Após o encontro, Paulo VI deu a cada um deles uma cópia da Populorum Progressio.

Publicada em 26 de março de 1967 o documento é histórico, impactante, profético e lamentavelmente atual. “Os povos da fome dirigem-se, de modo dramático, aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia” (PP, n. 3). A injustiça, a desigualdade mundial, a exploração, a exclusão e a morte dos mais pobres, são os principais problemas da humanidade. “Não se trata apenas de vencer a fome. O combate contra a miséria, embora urgente, não é suficiente. Trata-se de construir um mundo em que todos os seres humanos, sem exceção de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões” (PP, n.47).

A economia moderna, entregue a si mesma, arrasta o mundo para o agravamento da crise e não para a solução das desigualdades. Conflitos sociais propagam-se em dimensões mundiais (PP, n.9). Construiu-se um sistema que considera o lucro como motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como direito absoluto sem obrigações sociais. Este liberalismo sem freio conduziu à ditadura do imperialismo internacional do dinheiro. O capitalismo é a fonte de tantos sofrimentos, injustiças e lutas fratricidas com efeitos duráveis (PP, n. 26).O verdadeiro desenvolvimento deve ser para todos e para cada um, é a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas (PP, n. 20-21). Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando mais cruel a escravidão dos oprimidos (PP, n.32-33).

Como se não bastasse, agora as mudanças climáticas provocaram uma catástrofe humanitária na África, berço da humanidade. Terceiro maior continente e o segundo mais populoso. Possui 54 países, com cerca de 3 mil línguas nativas e uma vasta diversidade cultural, política e econômica. No dia 14 de março, o ciclone Idai deixou um rastro de destruição jamais visto no Hemisfério Sul. Mais de 260 pessoas morreram no Zimbabue, 60 no Malawi. Moçambique já conta mais de 500 mortos, milhares de desaparecidos e mais de um milhão de crianças sem lar. Não há água potável, nem eletricidade. A tragédia pode ser ainda maior pela disseminação de doenças como cólera, malária e diarreia. Há previsão de fome na região, porque parte das plantações foram perdidas. “Ninguém pode ignorar os inumeráveis homens e mulheres torturados pela fome, milhares de crianças subalimentadas à desesperança” (PP, n. 45).

O mundo está doente (PP, n. 66), pois a tragédia não parece ter sensibilizado os não africanos. Além da injustiça social histórica com a África, a catástrofe revelou mais uma injustiça, a climática. Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas mostra que as mudanças aumentam a intensidade de desastres ambientais. O aquecimento global eleva a temperatura dos oceanos, aumenta a capacidade da atmosfera em armazenar vapor d’água, produzindo tempestades violentas. Os habitantes de Moçambique emitem em média 0,3 a 0,1 toneladas de CO2-equivalente por ano. As emissões por habitante dos EUA chegam a 16,5 toneladas/pessoa/ano. O estadunidense médio tem um impacto climático equivalente a 55 moçambicanos médios.

A situação deve ser enfrentada corajosamente com ações imediatas (PP n.32): criação de um Fundo Mundial de Combate à Pobreza mantido por recursos destinados à indústria de armas; que os países ricos destinem parcelas do seu PIB para investir nos países pobres; superação do racismo ambiental que condena povos inteiros; justiça social como critério das relações econômicas entre países pobres e países ricos (PP, n.59).

Não há preservação do meio ambiente sem a construção de uma sociedade justa. Progresso com justiça social é o novo nome da paz (PP, n. 76). É hora de agir: está em jogo a sobrevivência de tantas crianças inocentes, o acesso a uma condição humana de tantas famílias infelizes, a paz do mundo e o futuro da civilização. Que todas as pessoas e todos os povos assumam suas responsabilidades (PP, n. 80). Uma humanidade que não cuida do seu próprio berço pagar um preço muito alto. “É como se tivesse perdido uma parte de mim próprio” (Mia Couto).

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