sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Francisco e a ruptura com o 'catolicismo de corte'

Como os gestos do papa atual inauguram o papado do futuro? Para muitos, um caminho sem volta
Papa atende confissões na Praça de São Pedro, no Vaticano, em 2017
Papa atende confissões na Praça de São Pedro, no Vaticano, em 2017 (Vatican Media)
Mirticeli Medeiros*

Nesta semana, foi confirmado o que todos aqueles que conhecem o papa que têm já esperavam. A chinesa que protagonizou uma das cenas mais desconcertantes do atual pontificado, foi recebida por Francisco, no Vaticano. O encontro aconteceu em janeiro, mas foi “descoberto” somente agora pelas agências de notícia internacionais. A informação é de que Francisco pediu que o momento não fosse divulgado, mas o episódio acabou vazando, uma vez que todos aguardavam, com expectativa, o desfecho do caso.

Recapitulando

Em 31 de dezembro do ano passado, o papa cumprimentava os peregrinos na praça de São Pedro, quando foi surpreendido por uma senhora asiática que o puxou bruscamente. Como reação imediata, o líder religioso tentou se desvencilhar. Sem conseguir se soltar, ele acabou dando alguns tapas na mão da mulher. Após a repercussão mundial do episódio, o pontífice pediu desculpas pelo ocorrido um dia depois, admitindo “não ter sido um exemplo” por ter agido por impulso.

Francisco e o novo papado

Assumir publicamente a culpa não é para qualquer um, sobretudo se pensarmos no sumo pontífice da Igreja Católica, sobre o qual, tradicionalmente, paira aquela aura da santidade. O papa mostra que um pedido de perdão não requer protocolos. Que errar e reconhecer o erro é o ato mais humano de todos, e por isso mesmo deve ser praticado por ele. Testemunho, para o cristianismo, é palavra de ordem. As rubricas, os discursos mediados e rigor diplomático ficam para a outra hora.

A sociedade clama por referências, mesmo que não demonstre que necessite delas. E Francisco é um exemplo para todos, doa a quem doer. O pior é que até quem o odeia sabe disso, mas faz de questão de desacreditá-lo na primeira oportunidade. Não se conformam com o fato de que essa instituição, chamada papado, também precisa de uma reforma profunda. E o papa, em primeira pessoa, deve estar aberto à essa mudança, justamente para que possa promovê-la com eficácia.

O estilo papal que Francisco inaugura - ou reinaugura - ficará para a posteridade. E é isso que deixa os seus opositores tremendo nas bases, à espera que o próximo sumo pontífice anule suas marcas. O papado do futuro, imposto pelo gestos de Francisco - e que, por consequência, renuncia aos privilégios -, obrigará a igreja a fazer o mesmo. O problema é que muitos “clérigos e leigos de corte” não estão à vontade com isso. Não estão preparados para romper com o que resta da igreja constantiniana que se orgulhava de ser detentora de um estado pontifício em um passado não tão distante, mas que ficava à mercê das ingerências dos poderosos. Até 1904, para quem não se recorda, as grandes potências católicas tinham direito de veto após a eleição de um pontífice.

Mas o que mais intriga em todas essas resistências em relação ao papa atual, é que muitas das críticas provêm, em muitos casos, de falsos moralistas. Pessoas que não estão preocupadas com excessos, vida faustosa, “soberba intelectual”, gula, em difamar os outros nas redes sociais, em difundir fake news e a submeter a religiosidade às ideologias políticas, porém, exigem que “o papa tenha compostura”. É hipocrisia que fala, não é?

Se Francisco durar mais três anos, conseguirá inaugurar com êxito um novo capítulo na história do catolicismo, de acordo com especialistas. Será um divisor de águas: uma igreja antes de Francisco e depois de Francisco. Atualmente, mais da metade do colégio cardinalício é formada por homens que se alinham com o estilo pastoral do pontífice atual. Sem contar que, ainda este ano, ele dará início ao processo de reforma efetiva da cúria romana com a publicação da nova constituição apostólica que estabelece a sua reestruturação. Vislumbramos, então, o estabelecimento de uma igreja de rosto franciscano, a qual basta ser luz do mundo para poder subsistir, em vez de detentora de todos os holofotes.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário