'Mangueira, vão te inventar mil pecados, mas eu estou do teu lado e do lado do samba também'

Ensaio da Mangueira, que trás em seu desfile uma releitura contemporânea da fé cristã (GRES Mangueira)
Paulo Veríssimo de Araújo Filho, SJ*
É carnaval e, mais uma vez, o público em geral acompanha a mobilização polêmica de grupos religiosos cristãos que reclamam desrespeito e blasfêmia por um alegado uso abusivo das imagens e ideias de suas crenças nas representações carnavalescas, especialmente no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Não é a primeira vez que isto ocorre e, atualmente, a Estação Primeira de Mangueira protagoniza o embate por seu enredo para o desfile de 2020 – A verdade vos fará livres.
O carnavalesco Leandro Vieira explica que pretende recriar a vida de Jesus como se este nascesse nos dias de hoje no morro da Mangueira e sua vida, identificada com a vida daquele povo, se tornasse um sinal de libertação para tantos que assumiriam com ele a luta pela justiça contra toda a opressão, vivendo um amor que não conhece fronteiras e exclusões.
Como uma espécie de antecipação (ou profecia) das tensões com o conservadorismo religioso, o samba enredo da escola anuncia: Mangueira, vão te inventar mil pecados, mas eu estou do teu lado (...). O mesmo samba enredo, por sinal, possui a responsabilidade de traduzir em música e poesia o trabalho de pesquisa e construção criativa do carnavalesco, embalando o desfile da escola na Marquês de Sapucaí, cantado por seus apaixonados foliões.
Mas afinal, perguntamo-nos, quem é o Jesus da gente que o samba enredo nos apresenta? E ainda, o que se diz dele soa realmente estranho ou escandaloso em relação ao Jesus dos cristãos? Resolvemos levar em conta a letra do samba enredo para ponderar. Especialmente se você é cristão, pode refletir sobre a imagem de Jesus que você conhece.
Encontramos, primeiro, a referência a que os clamores do povo sofrido sobe o morro e chega aos céus – Do céu dá pra ouvir o desabafo sincopado da cidade – como se de lá Deus os ouvisse e, enviando seu Jesus que passa a ser Jesus da gente, se fizesse um Deus próximo que desce do céu ao morro, nascendo pobre na periferia, para fazer parte da vida e das dores deste povo, para ser um como eles – rosto negro, sangue índio, corpo de mulher.
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Essa identificação com seu povo, especialmente os mais desvalidos, faz do Jesus da gente alguém solidário, que anuncia o amor e a paz, denunciando injustiças contra as mais diversas formas de opressão, sejam elas econômicas, políticas, religiosas – Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira, me encontro no amor que não encontra fronteiras; procura por mim nas fileiras contra a opressão.
Enquanto cumpre uma árdua missão, a de libertar os corações e resgatar a vida do seu povo, Jesus da gente é acolhido não por seu poder econômico ou político, por seu status social ou destaque na hierarquia religiosa. O seu compromisso com a verdade é tal que seu discurso tenta abrir os olhos até mesmo do próprio povo para que não esqueça de viver solidariamente e abandone de uma vez por todas os ídolos que prometem falsa libertação, falsa segurança, falsa paz – Favela, pega a visão: não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão.
Jesus da gente é um homem que prega a paz frente toda a violência praticada contra as populações do morro, as minorias, os marginalizados. Alguém para quem o egoísmo e o acúmulo de riquezas estão na raiz da desigualdade e da miséria, exigindo novas formas solidárias de vida na comunidade. Por sacudir assim o sistema e questionar a ordem imposta das coisas, é alguém cuja palavra soa como blasfêmia e dá-se por certa sua perseguição e condenação por parte das lideranças políticas e religiosas. A fome, a falta de moradia digna, a negação de direitos básicos, o racismo e a exclusão social são alguns dos pesos que seu povo carrega e que o Jesus da gente assume – eu ‘to que ‘to dependurado (...) de novo cravejaram o meu corpo, os profetas da intolerância. E aqui o enredo assume a crítica direta a práticas ditas religiosas, mas carregadas de autoritarismo.
A essa altura, ao falar do Jesus da gente, protagonista do enredo da Mangueira, segue-se um movimento espontâneo de aproximação com Jesus de Nazaré – o Jesus dos Evangelhos: o cristianismo ensina que o Cristo veio de Deus, enviado por Ele para salvar seu povo, nasceu pobre, viveu e cresceu longe dos grandes centros e quando começou a assumir publicamente sua missão, ao mesmo tempo em que anunciava o amor, curava, perdoava e acolhia as pessoas, teve dificuldade de ser entendido em seu messianismo de serviço. Jesus não empunhava armas, dizia ter vindo para servir e não ser servido (Mt 20, 28); para salvar, não para condenar (Jo 3, 17); para dar a vida, não para ameaçá-la ou tirá-la (Jo 10, 10).
O samba enredo da Mangueira carrega, então, para além da sensibilidade poética, de todo seu valor artístico agregado, um evidente e positivo sentido religioso. Possui, se assim quisermos, raízes profundamente bíblicas (ainda que não explicitadas, apesar do carnavalesco admitir a consulta à Bíblia, aos teólogos e líderes religiosos como fontes de sua pesquisa). O argumento do enredo é fruto de um inteligente exercício imaginativo que, não tendo a pretensão de ser uma aula de Teologia, atrai os corações, move o afeto das pessoas e desperta-lhes identificação e proximidade com Jesus. Inspirando sentimentos nobres, palavras verdadeiras, pensamentos bons, o enredo toca os corações, provoca-lhes abertura – Mangueira, samba, teu samba é uma reza.
Para além das discussões sobre os eventuais problemas em associar sagrado e profano na cultura, fé e festa, símbolos religiosos e sua representação na devoção popular, os cristãos podem encontrar no samba enredo da Mangueira de 2020 uma importante ferramenta pastoral para reapresentar aos corações de todas as pessoas de boa vontade o rosto de um Jesus divino e humano, próximo e atento às dores de seu povo, que conduz a todos à vida em abundância e plenitude, à festa que nunca acaba, das alegrias que não têm fim. Tudo isso enquanto proclama cantando, em meio a críticas e ataques, para desgosto de alguns, que a esperança brilha mais na escuridão.
*É jesuíta; Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN - Natal/RN) e bacharel em Teologia pela Faculdade Dom Heitor Sales (FAHS - Natal/RN. Atualmente é mestrando em teologia pela Faculdade jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE Belo Horizonte MG) e membro do grupo de pesquisa Interfaces da Antropologia na Teologia contemporânea, na mesma insituição. E-mail: verissimo.paulofilho@gmail.com.
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