quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Pecado de menina

A bela Angelina, que parece celestial, é desde criança uma soma de formosura e maldade
Ela, faceira como personagem de samba antigo, estimulava a paixão cada vez mais incontrolável de Elisberto
Ela, faceira como personagem de samba antigo, estimulava a paixão cada vez mais incontrolável de Elisberto (Unsplash/ Ayo Ogunseinde)
Afonso Barroso*

Quando Deus criou a mulher, duvido que tenha previsto tanta beleza numa das filhas de Eva. Chama-se Angelina. Não é Jolie, mas impressionantemente bela. Tem olhos claros e luminosos, que podem ser verdes, azuis ou cinza, dependendo da intensidade dos raios solares e das cores que prevaleçam no ambiente. Os cabelos são também camaleônicos: oscilam entre louros, castanhos e ruivos, derramados em ondas sobre os ombros como uma cascata de mel. A pele de seda do rosto emoldura um narizinho delicado e lábios que parecem um convite a todos os beijos do mundo. Se a desnudarmos na imaginação, teremos à nossa frente uma deusa sem véu.

Assim se resumem os 17 anos estéticos de Angelina. Passemos aos anos morais.

Beleza e maldade chegaram juntas no nascimento dessa menina. Manifestaram-se já na maternidade, ao primeiro choro. Quando retirada do ventre da mãe, parecia ver com olhos de desprezo o mundo ao redor. Chorou um choro estranho, misturado com uma espécie de sorriso irônico. Diferentemente dos bebês pós-parto, em geral um tanto feinhos, tinha uma carinha linda. A aparência celestial da pequenina inspirou a escolha imediata do nome que receberia no batismo.

— Vai se chamar... – disse a mãe...

— ... Angelina – disseram pai e mãe ao mesmo tempo.

Dois dias depois estava em casa, deitada em esplêndido berço e rodeada de carinho. Carinho compartilhado pelo irmãozinho Ângelo, que a admirava com um certo e natural ciúme da nova moradora da casa, na qual até então imperava soberano. Um ano e meio mais velho, Ângelo viria a sofrer muito nas mãos da bela, amada e malvada irmã, que cresceu tomando-lhe os brinquedos, puxando-lhe os cabelos, batendo nele, beliscando-o.

Pulemos aos quatro anos de Angelina. É quando os pais a matriculam numa escolinha pré-infantil, onde a beleza da menina chama todas as atenções. Mas é também o ambiente onde intensificará suas qualidades de menina má. A escolinha era um mundo novo e um convite aos pequenos delitos que ela impulsivamente logo passou a cometer. O primeiro foi cortar, com uma tesoura que achou debaixo de um caderno na mesa da “tia”, uma trança dos longos cabelos da coleguinha que sentava na carteira à sua frente. Fez isso com tanta habilidade que a pobre menina só ficou sabendo na hora do recreio, quando as outras começaram a chamá-la de “meia trança”. Em casa, a mãe da vítima viu aquilo com profundo desgosto. E chorou. Quem terá feito isso? Que maldade!

De maldade em maldade, angelicamente diabólica, nossa heroína atravessou a puberdade e se fez moça. Em idade de namoro, podia escolher o namorado que quisesse entre dezenas de rapazes que a olhavam com enlevo e cobiça. Pouco depois de completar os 16 anos, Angelina escolheu o primeiro namorado. Para espanto geral da nação colegial, um negro. Sim, um negro de nome Elisberto, professor de História. Ninguém sabe o que nele encantou Angelina, mas ela bem que sabia: só queria exercitar nele sua maldade.

O processo de sedução começou quando ela pediu umas aulas extras, alegando que não entendia bem certas passagens da História Universal, como a causa do desentendimento entre Roma e Cartago nas Guerras Púnicas. Por que púnicas? E por que os romanos queriam a todo custo deletar Cartago?

E o docente negão passou a dar aulas particulares na casa de Angelina, a perversa. Ela o excitava ao encostar-se nele de uma maneira ora lânguida, ora quase agressiva. Estava sempre com um generoso palmo de coxas à mostra, exibidas pelas minissaias que adotou como uniforme da escola domiciliar. Deixava que a beijasse, embora nunca na boca. Envolvia-o com fingida ternura, tão bem dissimulada que levou Elisberto a apaixonar-se irremediavelmente. Levava a linda aluna-namorada ao cinema só para exibi-la ao seu lado. Nas aulas, não raro esquecia o que estava ensinando para vigiá-la nos gestos e olhares. E ela, faceira como personagem de samba antigo, estimulava a paixão cada vez mais incontrolável de Elisberto.

Até que um dia ela disse não quero mais, acabou. Descartou-o, sem mais nem porquê. Ouviu com cruel indiferença os apelos desesperados do afro-professor, que entrou em pânico, seguido de profunda depressão. Esqueceu a história do mundo e terminou por esquecer-se de si mesmo.

Acabou por dar fim à sua própria história, enforcando-se com um cabo de interfone.

Informo ao leitor que assisti, consternado como todos os presentes, ao velório do professor Elisberto. Ela estava lá. Chorava, sim chorava. Mas vi um riso escondido entre as lágrimas. Um crocodilo choraria com mais sentimento. E foi ali mesmo, no velório, que tomei a decisão de dar por terminada a história de Angelina. Não quero mais saber dessa angelical e diabólica criatura.

Não sei o que lhe aconteceu depois de decretar com tamanha crueldade a morte do infeliz Elisberto. Não sei quantos outros rapazes ela seduziu para matar de paixão. Não sei por onde anda, não sei que perversidades anda cometendo por aí.

Ou melhor, sei sim. Me disseram que atualmente está namorando o baterista de uma banda de rock. Negro.

*Afonso Barroso é jornalista, redator publicitário e editor - domtotal.com

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