Projeto vai acelerar desmatamento e pode trazer danos graves a práticas tradicionais
A Br-319 corta regiões bem preservadas e pode causar danos a biomas ricos da Amazônia (DNIT)
Pablo Pires Fernandes
A Br-319 corta regiões bem preservadas e pode causar danos a biomas ricos da Amazônia (DNIT)
Pablo Pires Fernandes
O plano de pavimentação da BR-319 é apenas um entre vários do governo de Jair Bolsonaro que insistem em uma visão inconsequente em relação à região amazônica. A política ambiental da atual gestão federal desconsidera os reais impactos sobre as populações locais e ao meio ambiente, mas, mesmo diante das críticas científicas e dos riscos econômicos, segue seu curso para concretizar um projeto baseado numa lógica dos anos 1970, elaborada durante a ditadura militar, e há muito ultrapassada.
“Existe um mito que o asfaltamento da BR-319 vai levar governança e condições pra combater o desmatamento. É o contrário, na verdade. Isso tem sido observado e acompanhado há muito em todas as rodovias amazônicas e tem muito respaldo da literatura científica”, contesta Lucas Ferrante, cientista que realiza seu doutorado em ecologia no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa).
Respaldado por estudos acadêmicos, Ferrante afirma que “o desmatamento sempre cresce com o asfaltamento, porque atrai desmatadores, grileiros, latifundiários - pelo aumento de trafegabilidade gerado pelo asfaltamento”. Segundo ele, as obras de manutenção e o crescimento de pavimentação em diversos trechos da BR-319 já tem provocado impactos – negativos e “galopantes” – na região. “Um exemplo disso é a Vila Realidade, que aumentou em seis vezes a população desde 2015, quando começaram as obras da manutenção no trecho do meio a partir de 2014.”
Nos últimos anos, a discussão do impacto da BR-319 se resumiu basicamente à faixa de terra ao longo da rota da rodovia no interflúvio do Rio Madeira-Purus e, de acordo com a legislação brasileira, deve considerar o impacto a 40 quilômetros desde seu traçado. Estudos do amazonista e pesquisador Philip Fearnside, entre outros, demostram que os impactos da concretização da BR-319 para o meio ambiente e para as populações indígenas e locais podem ser trágicas e bem mais vastas do que o previsto na legislação.
Parceiro nas pesquisas do doutor Fearnside, Lucas Ferrante afirma que já existeum estudo do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) que projeta um “cenário de desmatamento de mais de 1.200% do que o observado hoje no Interflúvio Purus/Madeira”. Segundo ele, a BR-319, que já existe de maneira precária há anos, mesmo com trechos de difícil trânsito, já permitiu a abertura de ramais ilegais, adentrando em terras indígenas e alterando a dinâmica local como apresentado pelo pesquisador inclusive em denúncias ao Ministério Público.
Como exemplo, o cientista relata que já há “ramais ilegais partindo da BR para dentro de áreas de uso tradicional indígena”. “Esses indígenas estão deixando de acessar essas áreas por ameaças. São áreas importantes, como castanhais, que eles praticam atividade de coleta, uma das principais fontes de renda que vem sendo perdidas pela invasão que vem da BR-319.”
Ferrante alerta para o agravamento do impacto diante da pandemia da Covid-19. “Temos um trabalho publicado na revista Science, que demonstra que essas invasões de terra podem ser vetor de Covid-19 para as aldeias, uma força motriz pra dizimar esses indígenas, é um genocídio programado para as comunidades indígenas”, afirma.
A legislação brasileira afirma que, para os estudos ambientais (EIA/Rima), devem ser considerados os impactos em uma área de 40 quilômetros a partir do traçado da rodovia. No entanto, os cientistas envolvidos na pesquisa explicam que a expansão de ações ilegais a partir da BR-319, a especificidade do bioma e o impacto nas populações indígenas foram motivos para estabelecerem um modelo específico e mais preciso de análise, que considera os impactos numa área de até 150 quilômetros a partir da rodovia e foi publicado na Land Use Policy.
“Consideramos a projeção de desmatamento desse estudo realizado pelo Inpa, uma modelagem de cenário de desmatamento para a área, que tem muita confiabilidade e um dos cenários ainda mais conservadores do desmatamento que pode ocorrer”, explica Ferrante sobre a metodologia aplicada. Para ele, trata-se do cenário “mínimo de desmatamento do que irá acontecer e o dano pode ser ainda maior sobre esses povos”.
O marco de 40 quilômetros é a distância que o DNIT e o governo federal querem utilizar para a consulta e mesmo assim para uma pequena parcela das comunidades impactadas, ignorando outras que também estão dentro da faixa. “Entretanto, a Convenção 169 (da OIT), a qual o Brasil é signatário, não delimita a área do impacto”, ressalva. “Nosso estudo demonstra que esse impacto será além de 150 quilômetros, portanto, seria importante consultar esses povos até 150 quilômetros e não só a 40, porque isso também estaria respaldado pela legislação brasileira, é uma direito destes povos e eles serão impactados pelo empreendimento”, diz, destacando a necessidade de que o estudo e a consulta aos povos indígenas sejam feitos antes das obras.
“Esse direito à consulta está sendo ignorado, como já aconteceu em grandes outros empreendimentos da Amazônia, que causaram grandes danos aos povos indígenas. Tudo isso é muito grave, porque o Dnit vem ignorando o apelo desses povos”, afirma, sugerindo que o caso seja levado ao grupo que participou do Sínodo da Amazônia e ao papa Francisco, que tem sensibilidade a essas questões.
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