Processar informação é uma atividade importante, mas do modo como ocorre hoje é um exercício nocivo.
(Foto: Ilustração Max Velati) |
Por Max Velati*
O tédio não é um sentimento específico de perda ou uma depressão periódica. O tédio é resultado de um dispositivo da Máquina, o efeito devastador de um sistema concebido para destruir o "significado". Se o caro leitor está chegando agora, leia "Máquina" como o nome de todas as contradições nocivas do Progresso.
Quando ainda não havia a escrita, a transmissão do conhecimento ocorria por meio da Tradição Oral. Era uma responsabilidade do mestre conferir se a experiência de transmissão da cultura estava em andamento do modo correto. Ele precisava ter certeza de que o discípulo havia de fato recebido, guardado na memória e sobretudo, interpretado todos os valores fundamentais. A cadeia de transmissão de conhecimento dependia então do significado para prolongar-se no tempo como um organismo vivo.
A Máquina nos educou com métodos sutis.
Não percebemos, mas aprendemos a dispensar a cultura, a experiência, a memória e o significado. De um certo modo, aprendemos a dispensar a realidade.
A cultura não é mais transmissora de significado de geração para geração, e a memória - como disse antes aqui no Rota de Fuga - é um produto que compramos em loja de computadores. A cultura - que antes da escrita era a posse da soma de significados - hoje é apenas um conteúdo raso para consulta rápida; balas e doces coloridos de fácil digestão que recheiam todo o tipo de produtos eletrônicos.
Do período que estamos acordados, cerca de 1/4 passamos diante da televisão e este percentual encarando uma tela que pisca aumentou muito depois da Internet. O sucesso da Máquina é tal que ficamos felizes em ocupar o maior tempo possível com todas as variações de entretenimento. Fomos educados a preencher o Vazio com o Nada, treinados a anestesiar o discernimento na certeza de que estamos ativos e sábios porque estamos processando informações.
Processar informações parece uma atividade importante, mas do modo como ocorre hoje é um exercício nocivo e nos desvia do caminho da mente saudável. A prova deste desvio é que não queremos mais valores, queremos sensações e estímulos; não queremos mais experiências, queremos informação.
As evidências falam por si mesmas: as relações humanas hoje ocorrem virtualmente, sem a necessidade da experiência do contato. A educação dispensa a presença do mestre, o namoro dispensa os corpos e a amizade dispensa o abraço. A vida "real" dispensa a realidade e assim sobrevivemos com uma dieta pobre de significado. Neste processo, as informações precisam ser apenas "estimulantes", preparadas para consumo imediato dos sentidos e sem nenhuma necessidade de interpretação.
Estímulos e sensações precisam ser renovados em ciclos rápidos, pois têm vida curta. O mesmo acontece com os aparelhos que servem de suporte para este sistema e basta observar como todas as maravilhas da tecnologia ficam obsoletas em ciclos cada vez menores.
A vida sem nenhum significado é insuportável. A Máquina sabe disso e onde não existe um significado é preciso inserir algo parecido. A Máquina sabe que uma informação bem construída se parece muito com um significado, mas esta dieta artificial nos adoece. A causa da doença é que uma informação bem estruturada é apenas uma explicação e não têm o valor nutritivo de um significado, pois este só existe quando ocorre uma interpretação.
Estamos vivendo há muito tempo com explicações que se amontoam, mas sem nenhum significado real ou transcendente. Sofremos com esta Dieta de Informação porque estamos perdendo a habilidade de interpretar e discernir. O tédio é um sintoma claro de uma doença que no fundo é uma desnutrição provocada por uma alimentação deficiente de thauma. Já contei aqui no Rota de Fuga que thauma é uma valiosa experiência de espanto-reverência que nos protege da Máquina tanto quanto o significado nos protege do tédio.
Não precisa acreditar em mim. Não sou o único fazendo soar este alarme e a sirene está ligada faz tempo:
"O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando; cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores. O movimento é irrefreável(...). A História que estou relatando é a dos próximos dois séculos".
Friedrich Nietzsche - Fragmentos Póstumos - datados de1885/1887
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
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