Padre Geovane
Saraiva*
“O justo medita a sabedoria e sua palavra ensina a justiça, pois
traz no coração a lei de seu Deus” (Sl 36, 30). Dom Helder Câmara, durante sua
vida e seu ministério sacerdotal (1931-1999), alimentou-se e nutriu-se do pão
do céu, do pão dos anjos, o qual compreendeu em profundidade, já na frase em latim no santinho de ordenação: “Angelorum
esca nutrivisti populorum Tuum”. Na serenidade do amor que Deus lhe
reservara por toda eternidade, cita também São Boaventura, o místico de
palavras tranquilizadoras e motivadoras: “Te semper ambiat, ad te tendat, ad te
perveniat, te meditetur, te loquatur...”, sem esquecer aquela que iria marcar
sua maravilhosa caminhada sacerdotal: “Mãe Santíssima, abençoe o meu
sacerdócio!”.
A partir de
1931, o projeto e o grande sonho do Pai, que é o da vida fraterna e solidária,
tornou-se um obstinado desiderato perseguido pelo pastor dos empobrecidos, no
qual todas as pessoas do mundo possam viver a vida de filhos de Deus e irmãos
uns dos outros, sentando-se na mesma mesa e alimentados do mesmo pão. Dom
Helder encarnou em sua própria vida esse projeto de amor, na total e absoluta
disponibilidade, unindo-se ao Filho de Deus, pelos laços mais fortes, os laços
da caridade e da comunhão, que foram traduzidos na sua vida de compromisso, no
sentido de que na mesa todos pudessem se sentar e em volta da mesma, partilhar
o mesmo alimento, ensinando-nos que a vida, “bem certinha”, dos fariseus e
doutores da lei, excluía os convidados do banquete: pobre, deserdados e
pecadores, estando assim, bem distante do projeto do Pai.
Uma canção, por
ocasião do centenário de nascimento de Dom Helder Câmara (1909-2009), falava
assim sobre o querido artesão da paz: “o dom da paz,
tu és muito mais, és um dom do céu!”. Que bela e maravilhosa afirmação! Ele foi
uma obra preciosa, criada por Deus e marcada com o selo de sua graça, presente
no coração do povo, com a missão de transformar vidas, consciências e de semear
a bondade por toda parte.
Suas ideias e
todo seu trabalho e realizações, concretizado em toda sua plenitude na vida de
oração, contemplação e na sua ação pastoral, totalmente encarda na vida dos
seus semelhantes, especialmente nos empobrecidos, enche-nos de esperança e nos
leva crer que Dom Helder se imortalizará, jamais morrerá.
O teólogo, Padre
José Comblin, com a grande sabedoria de que lhe foi peculiar, quis imprimir na
nossa mente e no nosso coração a imortalidade de Dom Helder, ao afirmar: “Eu
sou daqueles que tem a convicção de que os escritos de Dom Helder ainda serão
fonte de inspiração na América Latina, daqui a mil anos. Ele lançou sementes
destinadas a produzir uma messe abundante nesta época do cristianismo que está
começando agora. Suas sucessivas conversões, sinalizando de certa maneira, a
futura trajetória da Igreja neste momento da história da humanidade”. Na
caminhada do povo de Deus tivemos figuras exemplares, que marcaram em profundidade
a história, as quais foram geniais, e por isso mesmo, exerceram uma decisiva
influência sobre a nossa civilização cristã.
Gostaria de me
deter um pouco sobre Martinho Lutero, que viveu entre 1483-1546. Ele foi uma
dessas pessoas, que durante alguns séculos significou para a grande maioria dos
católicos um rebelde, um herege, o herege por excelência, aquele que provocou,
na Igreja, o cisma do Ocidente e levou, com suas heresias, muitas almas à
perdição. Mas para os protestantes, pelo contrário, ele foi um “segundo Paulo”,
que redescobriu o Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo, tirando-o de baixo da
mesa e colocando-o em um lugar de destaque, em lugar bem alto e elevado.
Os protestantes
acentuam a profunda religiosidade do reformador. Em 1970, chegou-se a dizer que
“Lutero era mais católico do que se imaginavam...”. Estava longe dele a ideia
de uma separação da Igreja. Na luta em favor do Evangelho, não só contribuiu
substancialmente para a purificação da Igreja Católica, mas também para o
aprofundamento das questões básicas, as da Sagrada Escritura, da fé, da
consciência e da existência cristã.
Depois do
Concílio Vaticano II (1962-1965), num desejo de encontrar a unidade, o bispo
católico de Copenhagen (Dinamarca), Hans L. Martensen, em uma Conferência sobre
“Lutero e Ecumenismo hoje”, declarou também que os “católicos reconhecem hoje
que Lutero, como poucos outros, foi um teólogo genial e de grande influência na
história”.
Dom Helder
trabalhou incansavelmente pela unidade e foi considerado um “santo rebelde”, ao
mesmo tempo ensinou que a pessoa humana é sagrada, porque ela é imagem e
semelhança de Deus. O sonho carregado ao longo da vida e acalentado no seu
coração foi o de colocar a criatura humana em um lugar de destaque, também num
lugar bem elevado. Marcou profundamente uma época e nos deixou um grande legado
e lição: a lição de que o deserto da nossa vida tem que ser fertilizado pela
Palavra de Deus e que a vida está acima de tudo, que ela é mais forte do que
tudo, mais forte do que a morte.
Quando no
Brasil, em 1964, procuravam-se navegar nas águas e nas tempestades do regime
militar, foi aí que entrou Dom Helder Câmara, o grande irmão e amigo,
ensinando-nos a dizer não ao governo que se instalava, ensinando com grande
sabedoria, a navegar nas águas da vida, da esperança e da liberdade – É o
deserto que se torna santo, abençoado e sagrado! É essa a imagem do homem de
Deus, do dom da paz, tu és muito mais, um dom do céu! Guardemos a imagem do
homem de Deus e patrimônio da humanidade, que jamais morrerá, conforme seu
desejo: “A imagem que gostaria que ficasse de mim é a imagem de um irmão”.
*Padre
da Arquidiocese de Fortaleza, escritor, articulista, blogueiro, membro da Academia
Metropolitana de Letras de Fortaleza, da Academia de Letras dos Municípios do
Estado Ceará (ALMECE) e Vice-Presidente da Previdência Sacerdotal - Pároco de
Santo Afonso - geovanesaraiva@gmail.com
Autor dos livros:
“O peregrino da Paz”
e “Nascido Para as Coisas Maiores” (centenário de Dom Helder Câmara);
“A Ternura de um
Pastor” - 2ª Edição (homenagem ao Cardeal Lorscheider);
“A Esperança Tem
Nome” (espiritualidade e compromisso);
"Dom Helder:
sonhos e utopias" (o pastor dos empobrecidos);
"25 Anos sobre
Águas Sagradas (coletânea de artigos e fotos).
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