Essa área dos hospitais onde todos esperam alguma notícia de amigos ou parentes.
Na U. T. I., as máscares caem e as pessoas se revelam.
Por Lev Chaim*
De Amsterdã, voei 12 horas e 55 minutos para estar com minha irmã num hospital em São Paulo, onde ela havia sido operada de um aneurisma da aorta abdominal – artéria que nasce no ventrículo esquerdo do coração. Logo, de cara, o médico já disse que ela corria um enorme perigo de vida, tanto na operação como depois. Com isto na cabeça, cheguei a São Paulo arrasado e amassado.
Mas, graças a Deus, a primeira operação deu certo e a segunda, inesperada, também. Agora, era recuperar-se na U.T.I. Nesta situação periclitante, entre o despertar de um sono profundo e a vontade de se comunicar, ela completou 77 anos de idade, espetada por agulhas, sondas, drenos e uma máscara de oxigênio. Foi assim que me dei de cara com esta ala do hospital – a tão decantada U.T.I., onde todos esperam ansiosos por alguma notícia de amigos ou parentes
Como lá tem horas certas de visitas, meia hora à tarde e uma hora à noite, fiz um "acordo" com eles para entrar mais vezes, em momentos em que ela não estivesse passando por algum procedimento. Isso porque a minha permanência no Brasil seria de apenas 11 dias. Quando ela dormia, eu lia ao seu lado em silêncio. Quando ela acordava, segurava a sua mão. Quando ela se queixava de dor, pedia para ela se lembrar de algum lugar lindo que já havia visitado, em uma de suas muitas viagens.
Numa dessas ginásticas mirabolantes, para que ela se esquecesse da sede já que ela não podia tomar água, descobri que o seu lugar favorito, entre todos os outros que visitou, era a praia de Bora-bora, do grupo de Ilhas de Sotavento, do arquipélago da Sociedade Polinésia Francesa - um território ultramarino francês, localizado no Oceano Pacífico.
Eu não a conheço, mas o nome caiu do céu. Em horas drásticas, em que ela implorava por água, molhava apenas os seus lábios com uma gaze. Outras vezes, pedia para ela se acalmar e pensar em Bora-bora. – Que cor era a água?...Seus olhos brilhantes, responderam mais do que depressa, com palavras ainda mal articuladas–“Verde, lindo!” E por 11 dias, falamos de Bora-bora e de suas águas claras, transparentes.
Fora a situação particular da minha irmã, o que mais me impressionou neste contato intenso com a U.T.I. foram os parentes ali presentes. Pareciam que as máscaras haviam caído e você via as pessoas como elas realmente eram. Era como se o reinado da iniquidade houvesse desaparecido. Como eu não podia me ver, entre uma leitura e outra dos jornais do dia, perscrutava os outros com o olhar curioso. Um dia, na salinha de espera, deparei-me com uma cena emocionante.
Notei dois homens, barbados, jovens, em pé, encostados no muro, meio largados, a espera do sinal de entrada para a visita da tarde. Pela cara e pelos olhos avermelhados, notava-se que o caso era grave. Num determinado momento, um deles desencostou-se do muro e veiolentamente em direção ao outro, do outro lado do cômodo.
Quando chegou, ele se ajeitou contra o muro, ao lado do irmão, assim supus, pois as feições eram parecidas. Num determinado momento, eles se viraram, se olharame se abraçaram, rosto contra rosto, mãos cruzadas nas costas, num afago quase mágico, leve. Tudo parecia estar acontecendo em câmara lenta.
Naquele abraço singelo, de dor e de apoio, percebi concretamente quando dois seres humanos se despem de qualquer invólucro ou máscara, para dar um abraço de alma. Naquele momento, não existia o resto. Os dois homens, possuídos por uma dor intensa, pareciam a sós naquela troca de carinho, calor e apoio, com uma serenidade comovente.
Foi um abraço que mexeu comigo. Caso quisesse dividir a minha dor, não tinha ninguém naquele momento. A sorte era que para minha irmã, o pior já havia passado.Apesar dasala da U.T.I. estar cheia, poucos perceberam a cena sensível.Até parecia que ela já fazia parte do cenário local. Mas eu, mesmo de longe, não perdi um segundo daquele abraço carinhoso, quase divino.
Foi uma demonstração “in loco” do momento em que duas almas se mesclam para se tornarem uma. Sem sombra de dúvidas, foi um dos abraços mais impressionantes que já vi nesses últimos anos. Um cingir de braços e corpos, totalmente despidos de pruídos, vaidade, hipocrisia, vergonha, cobertos pelo manto sereno da compreensão para com a verdade da vida: o prazo de validade daquele ente querido, lá dentro da U.T.I., estava se expirando.
Magnetizado pela cena, levantei-me do lugar onde estava sentado e dirigi-me a eles e num sussurro indaguei: é um parente de vocês que está na U.T.I.? Um dos jovens me olhoucom os olhos tristes e disse: “Nosso pai, ele sofreu um acidente e está morrendo”. Sem saber o que dizer, balbuciei: “Que Deus o proteja! ”. Este mesmo jovem, sem nunca ter me visto antes, largou o irmão e deu-me um abraço forte e respondeu: “Muito obrigado, que Deus o proteja também”.
Tocado até a alma, as lágrimas vieram-me aos olhos. Foi neste instante que reaprendi uma coisa importantíssima na vida: quando a gente se solidariza com a dor do outro, a gente recebe de volta, de uma forma ou de outra. Naquele instante, ouvi a enfermeira chamar o meu nome para entrar. Nesse preciso momento, tive a certeza de que a minha irmã iria sair desta. Era a sua segunda vida.
Deixei os jornais que estava lendo na mesinha. No caminho para encontrá-la na salinha da U.T.I., pensava preocupado na notícia que havia lido há pouco: “a polícia brasileira mata cinco pessoas por dia” (150 por mês????). Aí, perguntei-me:“Que coisa entranha, até parece que o Brasil está em guerra e ninguém se deu ao trabalho de me contar!”
*Lev Chaim é jornalista, publicista da empresa FalaBrasil, colunista e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país em que mora. Lev Chaim escreve às terças-feiras, no Dom Total.
Nenhum comentário:
Postar um comentário