Quero meus radicais livres soltinhos a olhar um pôr de sol, longe dos olhos vidrados em smartphones.
O valor agregado que os radicais livres trazem é que viver é bom demais. (Foto: Arquivo) |
Por Ricardo Soares*
Dentro de mim há uma porção de radicais livres. A ciência diz que, pela minha idade, devo combatê-los. Mas eu gosto deles. Fazem com que eu não me acomode diante das comodidades, da generalizada falta de posicionamento e de opinião e nem diante dos muitíssimos puxa-sacos de plantão que pedem bênção todos os dias em horas diversas a todos aqueles que possam lhes auferir lucros e promoções. Os radicais livres podem ser combatidos com espinafre e cenoura e desde que eu soube disso tenho evitado suflês com esses ingredientes, pois temo incomodar meus radicais que resistem bravamente diante do fluxo sanguíneo moderado sênior dos bombeiros que apagam incêndios mesmo antes que eles aconteçam.
Os radicais livres liberam no metabolismo do corpo elétrons instáveis e reativos que dizem poder causar doenças degenerativas de envelhecimento e morte celular. Mas eu os quero instáveis e reativos, reagindo as intempéries sobretudo comportamentais. Os amigos insistem que os radicais livres detonam os cinquentões. Mas eu não quero os pequenos coxinhas, os grandes Lobões e muito menos as mentes lobotomizadas pelo deus-mercado mandando dentro de mim. Não quero os transeuntes de shopping- centers e nem os espectadores de Fórmula 1 a apostarem corrida dentro de mim. Quero os vagarosos e os pesarosos, aqueles que ainda matutam nas varandas antigas a pitar cigarros de palha olhando a paisagem e a bunda das moças. Quero os tiozões de chinelo de dedo a bebericar cachaça ouvindo sabiás laranjeiras e jogando truco. Mesmo lerdos eles são radicais livres.
Os radicais livres ainda lembram da primavera de Praga, do verão da lata, do Arpoador do desbunde e do Festival de Iacanga. Sonham com Paris 68 e até com o ano de 58 que jamais terminou. Falam ainda de Sartre, Marcuse, Danny le Rouge. Com suas mulheres de chinelão nos dedos chacoalham as madeixas ouvindo Janis Joplin. São doces radicais livres e não estão livres de colesterol, pressão alta , diabetes. Mas vivem. Não confundem felicidade com índice de consumo e o valor agregado que trazem para a atualidade é que é bom demais viver. Melhor do que pagar contas, pensar em plano de carreira e correr atrás do que nunca se alcança. Dizem sim que os radicais livres fazem mal. Mas eu gosto deles assim . Não quero os meus radicais livres presos. Quero eles soltinhos a olhar um pôr de sol bem longe dos olhos vidrados em um smartphone.
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.
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