segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Bom dia, meu velho!

Muitas coisas seriam mais fáceis se eu pudesse apenas sentir o calor do seu abraço.



'Hoje perdi o sono desde muito cedo e lembrei de você'. (Foto: Arquivo)
Por Ricardo Soares*

Bom dia, velho. Você, por um acaso, não chegou a envelhecer, mas envelhece dentro de mim que mergulho forte na "envelhescência". Minhas referências tem mudado com os tempos nublados. Mas hoje, por exemplo, faz sol ou imagino que faça pois assim quero ao olhar o céu de Brasília. 

De pronto, sei lá o motivo, hoje perdi o sono desde muito cedo e lembrei de você que não chegou a envelhecer e que gostava de beber muito café como eu plantado agora diante de um caderno a lhe escrever. Tantas cartas aos pais foram escritas desde que o mundo é mundo e,dia desses ainda, vi minha companheira a se deleitar com a grande carta que Kafka escreveu a seu pai expurgando a relação entre eles por todos os poros.

Bom dia, velho. Na verdade, resolvo te escrever essa manhã não necessariamente pela saudade que sinto, mas porque assim brotou, simplesmente. Fico curioso em saber como é que você mensuraria esse mundo novo e nem tão admirável, onde as pessoas se plugam em telefones e computadores e se desligam do entorno.E o entorno está entornando meu velho. Por isso mesmo por mais que eu possa demonstrar uma aparente fortaleza diante de mim mesmo ou dos meus demandados muitas vezes eu desmorono por dentro. Me sinto órfão de mim mesmo quando olho pra trás e já não vejo aquele menino cheio de esperança.

Sabe, velho, o mundo é pragmático e seu neto, hoje em San Francisco, sabe disso. Não se parece comigo e nem tampouco com você. Mas é um homem de bem, veja bem. 

Os aeroportos fervilham aqui, em ano de Copa do Mundo. As pessoas acordam para pagar contas e o país tem um trânsito de apocalipse nesse planeta cheio de carros. Nessa manhã, estou estacionado com um caderno apoiado sobre a barriga escrevendo "bom dia, velho". A sensação que me acompanha após tomar café com ovo frito é que, de certa forma, muitas coisas estariam mais fáceis se eu pudesse apenas sentir o calor do seu abraço. 

O mesmo daquela noite quando prestes à sua partida você sussurrou ao meu ouvido : "Filho, estou ficando velho". Não, pai, você não estava ficando velho. Nem deu tempo de você envelhecer. Você estava apenas partindo. Eu aqui, que vou indo, nem quero conjecturar sobre esses mistérios da vida. Só quero te dizer na verdade: "Bom dia, meu velho".
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor , roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

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