sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Ayubowan*

Livro oferece um pequeno, mas interessante dicionário das palavras que não temos no português.

Por Max Velati**

A imprensa mundial mostra diariamente conflitos em diversas escalas: da simples diferença de opinião ao ônibus incendiado, do debate acalorado no parlamento ao homem-bomba. Não é exagero dizer que a maior parte dos noticiários parece dedicada a ressaltar com zelo e requinte as nossas divergências, tudo aquilo que nos divide, separa, enfraquece e amedronta. Por essa razão, decidi trabalhar na coluna de hoje com uma "agenda positiva" e resolvi dar destaque a um livrinho delicioso, que apesar de ter poucas páginas oferece um grande alívio. Trata-se de "Tingo", escrito por Adam Jacot de Boinod e publicado no Brasil pela editora Conrad, na tradução de Luciano Machado.

"Tingo" oferece um pequeno, mas interessante dicionário das palavras que não temos no português. Listando termos de idiomas bem conhecidos, tais como inglês, francês, holandês e alemão ou garimpando palavras em dialetos obscuros como "kwakiutl", "rapanui" e "awabakal", o livro abre uma porta para deixar entrar aquilo que temos em comum. Na leitura, descobrimos com alívio que sentimentos bem brasileiros, sensações, impressões e até esperanças estão presentes também no cotidiano de povos distantes e com encantadora nitidez. Por razões culturais e históricas, o que todos nós sentimos já foi traduzido em palavras bem específicas, um patrimônio que nos une apesar do tempo, das diferenças e das distâncias. "Tingo" oferece exemplos claros daquilo que somos, mas ainda sem tradução no português, aquilo que existe em todos nós a despeito das fronteiras geográficas e da farta matéria-prima sobre diferenças oferecida nos noticiários sangrentos.

Quem nunca ficou irritado com aquele companheiro de mesa de bar que espertamente sempre vai embora antes de pagar a conta? No alemão, ele é precisamente o "Zechpreller". Que falta nos faz no noticiário um termo exato para designar aquele que ganha a vida negociando carros roubados! Na Rússia, ele é um "koshatnik". Também é útil saber, em tempos de calor e seca, que entre os árabes a palavra "gurfa" define exatamente "a quantidade de água que cabe na mão". Interessante perceber também como as palavras definem um modo peculiar de examinar a realidade. Um exemplo disso é a palavra "toelva", que no islandês é "computador" e formada pelos termos "dedo" e "profetisa".

Povos antigos têm exemplos deliciosos de precisão. "Krosa" é a palavra em sânscrito para "grito", mas transformou-se também em uma unidade de medida para determinar uma distância de mais ou menos 3 quilômetros, limite máximo para um grito humano ser ouvido.

O japonês sempre se destacou como língua precisa e não é surpresa descobrir que a expressão "katahara itai" descreve com esmero o ato de "rir observando outras pessoas realizarem tarefas acima da capacidade delas". Isso sempre acontece comigo quando assisto qualquer coisa na TV Senado. Nestas ocasiões também entendo perfeitamente a palavra "kopuhia", da Ilha da Páscoa, e que dá nome a "alguém que desaparece e não faz o seu trabalho".

Refletindo sobre estes poucos exemplos já dá para entender melhor o sonho de Ludwik Lazarus Zamenhof, criador do Esperanto. Uma única língua significaria enormes prejuízos culturais, mas estamos precisando mesmo e urgentemente é de mais entendimento.

*Usei como título deste Rota de Fuga uma palavra do Sri Lanka e que sozinha pode significar “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite” e “adeus”.
**Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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