sexta-feira, 28 de março de 2014

Por falar em 31 de março...

Passados 50 anos, temos afinal alguma coisa parecida com maturidade e estabilidade política.

Por David Paiva*

Alguns acontecimentos e personagens de hoje me lembram peruas Vemaguet e as calças de Nycron. São puro filme de época ambientado em 1964.  Quando, naquela terça-feira, os soldados do general Mourão Filho lançaram-se na primeira escaramuça que, logo no dia seguinte, se ampliaria para a deposição do governo Goulart, o país era outro. 

De acordo com o cientista político René Dreifuss ("1964: A conquista do Estado"), "o que ocorreu em abril de 1964 não foi um golpe de Estado conspirativo, mas sim o resultado de uma campanha política,ideológica e militar travada pela elite orgânica centrada no complexo IPES/IBAD".  O economista Glycon de Paiva, um dos líderes do IPES, revelou em entrevista a Dreifuss que a diretriz era "a criação de um caos econômico e político, o fomento à insatisfação e profundo temor ao comunismo por patrões e empregados (...) e até mesmo atos de terrorismo, se necessário". 

O Brasil daquela época vinha de décadas de crescimento econômico acelerado, mas um crescimento que em nada mudava a absurda concentração de renda. Só no governo JK, de 1956 a 1961, o crescimento médio anual foi 9,3%, mas a renda dos 10% mais ricos continuou sendo 34 vezes a dos 10% mais pobres. Num tempo em que a maioria da população dependia do campo, 62,3% das áreas rurais eram ocupados por apenas 3,4% das propriedades. Traduzindo: era um país com um estopim à disposição do primeiro fósforo. 

Enquanto isso, o mundo se dividia na complicada operação da Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética disputavam o poder de liquidar o planeta, um em nome da eficiência econômica e da democracia liberal e o outro em nome de uma utopia igualitária e de uma suposta democracia popular. Na realidade, o que existia era a feroz disputa entre dois impérios em que pouco lugar restava para utopias e sonhos. De um lado ou de outro, tudo o que era oferecido a países secundários como o Brasil, ocasionais satélites de um dos dois, destinava-se a riscar o fósforo no estopim. Ícones inimigos, Pato Donald e Fidel Castro eram a mesma coisa. 

Foi nesse ambiente que se deu o 31 de março de 1964. Cinquenta anos depois, um dos grandes impérios orwellianos deu por encerrado seu espetáculo e sem agradecer se retirou. Com ele acabou um dos negócios mais prósperos do mundo, a publicação de livros marxistas. O grande império contrário, que em certo momento pareceu único e incontrastável, tão grande e tão vencedor que teria até acabado com a História, parece agora a caminho da irrelevância, às voltas com a gravíssima doença de ser antipatizado em toda parte. 

Por aqui, passados os vinte e um anos da sinistra brincadeira dos soldados do general Mourão Filho e seu subsequente desfile de horrores, seguidos de mais vinte e nove de democracia tosca, mas democracia, temos afinal alguma coisa parecida com maturidade e estabilidade política. Podemos melhorar muitíssimo o famoso “isso que aí está”. Mas melhorar significa aprimorar o que já foi feito, e não brincar de passado e convocar a rapaziada do general Mourão; isso sim, é doença infantil da política. Por ruim que seja, não existe outro caminho além deste por onde foram Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Longe de terem sido perfeitos, eles são o nosso melhor antídoto contra o mal de 31 de março.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.

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