terça-feira, 18 de março de 2014

Sessenta anos olhando um morro

Da janela de meu quarto, vejo esse morro há 60 anos e me dou conta que não sei o nome dele.

Por Ricardo Soares*
O calor é sempre o calor. Um despudor de suor, inconveniências orgânicas, má disposições, ausência de brisa que leva o juízo para os bueiros entupidos da cidade maravilhosa. Da janela do meu quarto, vejo um morro que brilha de tanto sol que bate nele. Na pedra larga, umas costas amplas que dão de frente para o mar carioca lá embaixo.

O ventilador que devia funcionar aqui no quarto está devagar, quase parando. Como meu parco ânimo (desanimado), que arrefece com o calorão. Aí me dou conta de que, da janela desse quarto, eu vejo esse morro há 60 anos e não sei o nome dele. Ou esqueci? Um dia, terei sabido seu nome sepultado nos meandros da memória? Improvável visto ser o morro sempre perene, e não eu.

Nesse Rio de Janeiro, logo abaixo onde, no passado, flanava em densas observações nosso Machado de Assis, julgo não ter mais nada a acrescentar à guisa de considerações, pois tudo sobre essa urbe já parece ter sido escrito. Não me meto com quem é do ofício, pois sinceramente meu oficio foi tão modesto e inconsistente, diante dos valores humanos, que é melhor não me derramar sobre ele. Só digo que fui relojoeiro durante muitos e muitos anos com um espacinho estabelecido entre a Lapa e o Centro e lá arrumei tantos relógios e acertei tantos ponteiros que se possível fosse partilhar todas as horas que pus pra frente ou pra trás minha vida na verdade teria ficado estática. Sem ir pra frente, sem voltar pra trás. Parada no tempo. 

Pois então se lido com o tempo, esse espaço relativo, não tenho tempo de pensar no nome desse morro  que me avista há 60 anos. Moro num sobrado.  No andar de baixo noto uma movimentação incomum. Barulhos estranhos de gente que lida na cozinha. Um cheiro bom sobe até o quarto e imagino que possa chegar até o morro sem nome.  E assim passa o dia entre cheiros, mirações, divagações. A tarde cai e, mesmo assim, o calorão persiste. Passos se aproximam do quarto. Uma moça simpática, alta e morena  para na porta e sorri pra mim:

- Papai, se arruma que está todo mundo te esperando lá embaixo... Inclusive a mamãe, que está de vestido novo. Afinal, não é todo dia que se completa 60 anos de casada!

Olho em torno e acho tudo muito vago. Não sei de quem essa moça está falando e nem o morro, austero, me responde. Só sei que me enxergo jovem, aqui e agora, a olhar uma moça miúda e loira, sentada ao meu lado na confeitaria Colombo. Estendo um lindo anel para ela, mas não consigo ler o nome ali gravado. Será isso o que chamam de "vaga recordação do passado"?
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

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