sábado, 17 de maio de 2014

Minestrone cultural

Ser um oriundo é viver dividido entre dois países, dois modos de ser, dois passaportes, duas línguas...

Por Fernando Fabbrini*
O destino, a crise italiana do século XIX e um navio cheio de imigrantes chamado Espagne fizeram de mim um oriundo. Pensam que é fácil? Ser um oriundo significa viver dividido entre dois países, dois modos de ser, dois passaportes, duas línguas e milhares de complexas necessidades que se misturam sem nexo. Algo como uma grave esquizofrenia de fundo sentimental ou um minestrone cultural de sabor estranho, se me entendem. Por exemplo: nasci de uma família italiana sob o sol escaldante do Brasil. Tudo bem, sei que o sol faz bem, ajuda a fixar as vitaminas, dá certo bronzeado permanente ao corpo. Também fui dotado de bons anticorpos: sobrevivi às doenças tropicais, a uma ditadura militar, ao samba, a inúmeros carnavais, ao futebol e à cachaça.
Entretanto - que mistério! - meu lado brasileiro busca desesperadamente o seu oposto e se extasia com a ausência do sol e do calor. Sou apaixonado por dias nublados, pela neblina que cobre gentilmente os ciprestes, pelos segredos que se escondem atrás das portas fechadas pelo frio, pelo silêncio das noites de Orvieto - quando se ouve apenas o latido de um cão, ao longe. Minha cidade brasileira é moderna, foi planejada e construída por volta de 1900 por operários de todo o mundo, inclusive italianos - entre eles, meu avô Lorenzo. É uma cidade imensa, grande demais para o meu gosto e muito barulhenta para meus ouvidos. Quase feia, previsível, insípida, de ruas paralelas e praças tediosas, tem quase três milhões de habitantes e nada menos de um milhão e meio de automóveis loucos a percorrerem suas ruas.
Cada vez mais eu detesto os automóveis, são dinossauros em fase de extinção. E há pouco cheguei à conclusão de que minha cidade brasileira é habitada por automóveis, e não por pessoas. “Bom dia, Sr. Fiat!” “Boa tarde, Sra. Mitsubishi!” “Como vai, Doutor Chevrolet?” Assim, quando meus pés tocam a plataforma da estação ferroviária de Orvieto, sinto-me tele transportado – com alma, sentimentos e malas - para outra dimensão de meu ser.  Estou na antiga Velzna, e o funicular me parece uma singela máquina do tempo. Desembarco sem pressa na Piazza Cahen, onde alguns dinossauros estão estacionados - mas são dóceis, inofensivos, dormem ao frio, preguiçosos.
Se minha cidade brasileira tem avenidas retas e largas, Orvieto me presenteia com ruas tortas, becos românticos, casas e palazzi que se amontoam aqui e ali sem nenhuma disciplina ou lógica. E gatos, muitos gatos que me lançam olhares cúmplices. Isso me faz bem, me acalma. Faz-me lembrar da própria vida, com suas curvas, incertezas, obstáculos, sombras e surpresas, e onde a linha reta e exata não passa de uma grande ilusão criada por mentes frias de tecnocratas.
Percorrer as ruas de Orvieto sem pressa é quase um ritual que pratico de forma solene. Ah, sim, aqui existem pessoas! Em Orvieto, em poucas semanas, fiz muitos amigos – o verdureiro, o casal vizinho, a moça da loja de roupas, o dono da ótica, o rapaz da lavanderia, o outro da pizza a taglio e tantos mais. Passar por eles de manhã ou à tarde, acenando e dizendo buongiorno ou buonasera é quase uma experiência mística para alguém que, como eu, sequer se lembra do nome de meia-dúzia de vizinhos de rua no Brasil.
Em Orvieto, meu lado italiano se acomoda, relaxa, descansa e conversa consigo mesmo sobre a beleza da arte, as surpresas do amor, as razões da vida, o colorido das flores e outros assuntos urgentes de extrema importância. Viver dividido, cortado em dois pedaços conflitantes, será minha sina de oriundo, para sempre. Mas em Orvieto descobri o terceiro lado dos oriundi: uma parte feita de sol e chuva; de luz e sombra; de calor e frio, onde o tempo não se calcula pelas horas - mas pela medida incerta dos sonhos e das emoções.
*Fernando Fabbrini é publicitário e escritor.

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