Gilmar P. da Silva SJ*
Os reis estão passando a coroa. Não foi somente o rei de Espanha que abdicou do trono recentemente em favor de seu filho, o príncipe das Astúrias. O movimento pôde ser sentindo também nas renúncias de Beatriz da Holanda e Albert II da Bélgica em 2013. Sente-se a necessidade de abdicar em favor daquele que possa responder mais habilmente aos novos desafios. Talvez a renúncia de maior significação tenha sido a papal, no ano passado.
Com frequência, o ato de renunciar é visto como sinal de incapacidade ou decadência. Mas não é bem assim. Talvez nos valha o ditado popular “Quem é rei, não perde a majestade”. Isso porque, geralmente, a capacidade de renunciar brota de um olhar múltiplo, um olhar desde o alto da situação, um olhar soberano. O primeiro olhar é sobre a realidade, à qual se busca responder com uma tarefa qualquer, não só a de governar. O segundo está sobre as próprias capacidades e limitações em dar tal resposta. O terceiro está nas potencialidades dos outros que podem exercer a mesma tarefa com igual ou superior qualidade. Sem um olhar soberano, não há possibilidade de renúncia ou qualquer abaixamento.
Com efeito, a soberania de alguém reside exatamente aí, na capacidade de descida. Eis o paradoxo: Soberano é quem, com um olhar desde o alto, consegue se abaixar. Afinal de contas, não teme qualquer degradação aquele que reconhece em si uma força de resistência, quem sabe de si. Algo similar à capacidade de resignação muito manifesta pelos Provos durante a década de 60. O movimento de contracultura holandês, por meio de ações pacíficas, exibia o absurdo da inabilidade e truculência policial e das autoridades. É deles a ideia das bicicletas brancas, projeto parte dos chamados “planos brancos”. Essas bicicletas eram espalhadas pela cidade para que qualquer um as pudesse usar livremente como meio de transporte. Sua maneira de pensar não vertical coaduna com sua resiliência. Mesmo apanhando, não reagiam conforme a força. Quanto maior era a violência, maior se mostrava sua altivez.
O apego exagerado a cargos ou estruturas de apoio revela, com frequência, a insegurança de uma pessoa. É fácil atrelar aquilo que se é ao cargo que se ocupa e ligar o próprio valor na função que exerce ou naquilo que possui. E se eu sou apenas o que tenho ou faço, o que serei sem isso? E se sou só isso, que pequeno eu sou! Grande mesmo é quem consegue se fazer pequeno. E é bonito quando pessoas bastante experimentadas na vida trabalham com iniciantes de igual para igual. Quando são capazes de enxergar o valor do novo desde sua experiência. Aliás, isso se tem visto muito no meio artístico, quando cantores de fama reconhecida legitimam e constroem projetos com outros mais novos, como que passando a coroa. Milton com Criolo, Caetano com Maria Gadú etc. O primeiro, por exemplo, já tem 72 anos e o segundo 71. E alguém poderia acaso dizer que sua arte é decadente? Ao contrário.
Há uma nova geração chegando e com muita qualidade. Alguns nomes, inclusive, não são conhecidos do grande público. Nesse sentido, vale ficar atento aos novos nomes, aqueles que levarão o estandarte do gênio musical seguindo na linhagem dos bons artistas. Vitória Canário encarna esse papel. A jovem cantora e violinista recebe a majestade musical do pai, o compositor, cantor, violonista e produtor musical, Lula Canário. Laçaram juntos com José Ricardo, cantor e violonista, recentemente, um CD voltado ao público infantil. Cantigas e Canções: melodias para brincar traz músicas tradicionais e de domínio público que remetem também adultos à própria infância. Tudo em nova roupagem, marcada pela suavidade das vozes de Lula e Vitória. A pertinência do projeto se dá em um tempo em que nossa meninada é submetida às estridências de galinhas e palhaços televisivos, com suas pintas e patotas. Pai e filha se fazem crianças e, na sensibilidade pueril – e por isso de adultez tremenda –, apresentam um obra rica para quem queira dar ao filhos a herança de uma infância poética, uma coroa de sonhos e bons sons.
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