quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A laicidade nasceu cristã

Filósofo critica cristãos fundamentalistas e sua ofensiva contra a liberdade de escolha.
Existe a laicidade liberal no coração do Ocidente. É o princípio pelo qual cada indivíduo, enquanto dotado de consciência e de vontade, é livre e igual. E é o princípio pelo qual a esfera privada, presidida pelos direitos fundamentais, se distingue da esfera pública. É a convicção que liberdade e igualdade, direitos e deveres, privado e público, estejam em condições de produzir uma sociedade civil capaz de nutrir sólidos vínculos comunitários. É esta a laicidade liberal, o "liberal secularism" de Larry Siedentop. É essa a herança do processo plurissecular através dos qual o Ocidente “inventou o indivíduo”.

Intitula-se precisamente "Inventing the Individual" a última obra do filósofo americano da política, com 78 anos. O livro foi publicado no inicio do ano na Inglaterra e sairá em outubro nos Estados Unidos. As quatrocentas páginas da obra são uma declaração de amor e, simultaneamente, um grito de alarme. Na laicidade liberal o autor celebra um credo ainda vivo, larga e profundamente radicado; e, todavia, Siedentop exprime sua inquietude com um Ocidente distraído, inconsciente, ignorante. Por uma laicidade esvaziada das duas “heresias liberais”. De um lado, a livre escolha degenera em mercado sem justiça, em interesse cego: é a heresia utilitarista. Do outro, o individuo se isola, não vai além dos elos familiares e amigáveis evaporam o espírito cívico e o empenho político: é a heresia individualista. As duas heresias privilegiam a liberdade em detrimento da igualdade, sacrificam a capacidade de ver-nos nos outros e os outros em nós. De modo que o princípio se debilita, perde seu “duradouro valor moral”.

Se isso ocorre, segundo Siedentop, é porque extraviamos a genealogia da laicidade liberal; e, sobretudo, porque não compreendemos mais o fundamento cristão. Inventing the individual responde com uma corrida através dos milênios, à procura das viradas que mudaram o modo de crer na história, nos eventos, no homem. Tudo começa com o monoteísmo judaico. Aos deuses greco-romanos, escreve Siedentop, se substitui um Deus que corresponde “à experiência de pessoas subjugadas por Roma”, e, portanto “um Deus singular, remoto e imperscrutável”.

A lei deixa de ser ‘logos’, razão. É comando que desce da vontade absoluta do único Deus, dado pela lei. Ao tempo cíclico da religião greco-romana se substitui o tempo linear da história da salvação, mais apropriado a um povo nômade do deserto, “que tem familiaridade com a experiência do vento que, soprando sobre a areia transforma a paisagem de um dia ao outro”.

Também os reis e os poderosos devem submeter-se à lei de Deus: “A vontade divina é como o vento que desloca a areia do deserto”, explica Siedentop, e “nada lhe pode resistir”.

O Deus cristão rompe ulteriormente com os esquemas da antiguidade. O Cristo crucificado e ressurgido traz Deus dentro de cada um, elevando assim “a ação moral do indivíduo”. Não há mais judeus e pagãos, escravos e livres. A imortalidade é acessível a quem quer que renasça com o batismo. “A igualdade moral substituía desigualdade natural” da antiguidade greco-romana, escreve Siedentop: “A identidade do indivíduo não se exaure mais em sua função social”. É neste espaço que se afirma a nova liberdade, a liberdade da consciência, enquanto esconjuram o risco de anarquia as obrigações morais derivantes do fato de que todos os homens são filhos de Deus. O autor sublinha o papel de São Paulo, talvez “o maior revolucionário da história”. É decisiva a fadiga de Paulo com aqueles cristãos que resistem à mudança de paradigma. Na correspondência com as igrejas que fundou, escreve Siedentop, “Paulo combate contra hábitos mentais que, do seu ponto de vista, recriam formas de sujeição, que transcuram a caridade em benefício das regras, e que atribuem a “principados e potestades” competências impróprias”.

Os méritos das Igrejas na edificação de um habitat social e institucional favorável à responsabilidade individual ocupam um lugar central no volume. Criando um direito da Igreja distinto da teologia e do direito civil, distinguindo a soberania do Papa daquela do imperador, fundando a subjetividade jurídica, os canonistas medievais criam a laicidade.

Ao telefone de sua Oxford, o autor rebate a “a Leitura” a convicção que se deva precisamente aos canonistas, em particular no início do segundo milênio, o contributo crucial. O seu modo de raciocinar por pro e contra, diz Siedentop, foi “extraordinariamente positivo para a mente ocidental”. As comunidades cristãs, todavia, são também incubadoras das falências e dos conflitos de que se libera aquela que Siedentop chama a “guerra civil não declarada” entre laicidade liberal e cristianismo. Desta guerra civil o autor narra o desenvolvimento histórico. De um lado, a distorção de perspectiva em força da qual o Humanismo e o Iluminismo procuraram, no mundo greco-romano, aquela fundação da laicidade liberal que, ao invés, estava na Idade Média cristã; do outro lado, o choque, especialmente na Europa, entre movimentos anti-religiosos e Igrejas autoritárias, escravas dos próprios privilégios.

Mas, ao autor interessa também o presente da guerra civil. O filósofo critica os cristãos fundamentalistas, sobretudo americanos, e sua ofensiva contra aquela liberdade de escolha da qual deveriam ser orgulhosos; critica até Bento XVI, por haver invocado uma aliança entre religiões contra a laicidade. Simetricamente, Siedentop censura quem, em nome da laicidade, combate a religião que aquela laicidade produziu. A declaração de amor e o grito de alarme de Larry Siedentop convergem precisamente aqui: o princípio liberal que o cristianismo “inventou” é agora uma fé no homem sem fé em Deus. Solicitado a propósito de “a Leitura”, Siedentop afirma: “Somos cristãos pela metade, quer se saiba isso ou não”.

Bem, mas quanto vale esta metade? Que valor tem o indivíduo de Siedentop numa sociedade ocidental na qual se reduziu o espaço de Deus? Quanto conta compreender que nossos princípios têm raízes cristãs, se depois não temos fé no Deus cristão, e muito menos nas Igrejas? Não devemos subvalorar o valor do nosso “credo profundo” na igualdade e na liberdade, replica a voz subtil e tenaz do filósofo. Seria trágico reduzir a laicidade liberal a “ausência de credo, indiferença e materialismo”. Independentemente de nossa fé no Deus cristão, sugere Siedentop, “devemos ser orgulhosos da cultura nascida daquela fé, uma cultura na qual os princípios vêm primeiro que as regras”.
Corriere della Sera, 14-09-2014.
*Marco Ventura é professor de direito das religiões e direito canônico, em artigo publicado em "La Lettura". A tradução é de Benno Dischinger.

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