Os distúrbios em Missouri reproduzem imagens policiais e a luta pelos direitos civis dos negros nos anos 60.
Por Joan Faus*
As cenas nas ruas de Ferguson de policiais majoritariamente brancos contra manifestantes quase exclusivamente negros evocam incômodos ecos do passado nos Estados Unidos. Algumas das imagens dos últimos dias da polícia mirando e prendendo pessoas afro-americanas nesse subúrbio de Saint Louis (Missouri) – que protestam pela morte, em 9 de agosto, de um jovem negro desarmado por disparos de um policial branco – são similares às tomadas nos anos 60 durante a época dos direitos civis em várias cidades do país.
O contexto, no entanto, é diferente. A proibição por lei, em 1964, da discriminação racial é, 50 anos depois, uma realidade consolidada. A chegada de Barack Obama à Casa Branca é a melhor prova.
Mas algumas coisas não mudaram. “Há causas similares” entre os protestos nos anos 60 e Ferguson, aponta Cathy Lisa Schneider, professora na Universidade Americana em Washington e autora de um livro recente sobre distúrbios raciais nos EUA e na França. “Quase sempre foram provocadas pela morte de uma pessoa de minoria racial nas mãos de um policial”, explica em entrevista telefônica. Em Ferguson, 2/3 da população é negra, mas os cargos políticos e policiais estão ocupados quase exclusivamente por brancos.
É uma realidade que prevalece em outras localidades do Meio Oeste do país. Os mesmos antecedentes se repetem na maioria das mobilizações raciais que sacudiram os anos 60.
200 mortos em conflitos raciais
Em todas “havia crescentes incidentes de violência policial” até que aconteceu um detonador que desata uma indignação acumulada. Então, sustenta Schneider, o modus operandi costuma ser parecido: os protestos começam pacificamente, mas uma resposta equivocada política e policial acende os ânimos. “Vemos como as autoridades locais se mostram impermeáveis às demandas” de outra comunidade racial que “carece de influência política”.
David Garrow, professor de direito na Universidade de Pittsburgh e autor de vários livros sobre o movimento dos direitos civis, sublinha que os distúrbios por motivos raciais em Ferguson ficam muito distantes da gravidade – em manifestantes mortos e detidos, e destroços públicos – dos ocorridos nos 60 por todo o país e em 1992, em Los Angeles. Mas ele acha que os protestos no Missouri são os mais importantes desde os de Los Angeles, uma cidade 183 vezes mais populosa.
Entre 1964 e 1971 aconteceram mais de 750 distúrbios raciais nos EUA, com choques entre a polícia e cidadãos negros. Provocaram ao redor de 200 mortos, 1.300 feridos e deixaram muitos bairros em ruínas. Garrow coincide que, apesar do final oficial da segregação racial, a “má conduta” policial e a falta de diversidade étnica entre os agentes eram um “problema” na época e continua sendo agora.
Apesar de que as roupas e os equipamentos evoluíram, algumas imagens da atuação policial em Ferguson são muito parecidas às dos protestos de negros em Birmingham (Alabama) em 1963. Mas o professor considera que a maior semelhança é com os distúrbios no final dos 60 no norte dos EUA: “O movimento dos direitos civis no sul, entre 1963 e 1965, foi quase totalmente pacífico, apesar de lembrarmos das imagens de policiais com cachorros e golpeando as pessoas”, lembra. “Mas os que vemos em Ferguson, com a atitude violenta de alguns manifestantes e uma polícia de estilo militar, são imagens muito parecidas às revoltas de 1967 e 1968 no norte”, acrescenta em referência a Detroit, Newark ou Washington.
A Guarda Nacional do Missouri (a polícia estatal) foi enviada por três dias em Ferguson. No final dos 60 fez isso em Washington. E em 1992, em Los Angeles, junto com mais de mil marines e soldados. Apesar desta analogia com a cidade da Costa Oeste, a gravidade é incomparável: ali, a absolvição de quatro policiais que tinham golpeado um taxista negro desatou uma onda de fúria que deixou 55 mortos, mais de 2.000 feridos e um bilhão de dólares em perdas materiais.
Em Ferguson, desde a morte de Michael Brown, dia 9 de agosto, perto de duas centenas de pessoas foram detidas e mais de uma dezena de lojas saqueadas. Até o momento, não há manifestantes mortos. Nesta segunda-feira, foi realizado o funeral de Brown na Igreja Missionária Batista do Templo Amável em Saint Louis, perto do Missouri.
Depois de Los Angeles, os distúrbios raciais mais relevantes foram os de 2001 em Cincinnati – no Meio-Oeste – e de 2009 em Oakland (Califórnia). As duas cidades são entre 15 e 20 vezes maiores que o subúrbio de Saint Louis, mas a faísca que acendeu as ruas foi a mesma: a morte de um jovem negro nas mãos de um policial branco com um pano de fundo de tensão racial. Em julho de 2013, a absolvição do vigilante comunitário hispânico que matou, na Flórida, um outro rapaz negro, Trayvon Martin, desatou protestos em todo o país, mas sem incidentes.
Distúrbios de longa duração
Para a professora Schneider, a duração é o principal aspecto diferente de Ferguson em relação aos outros protestos posteriores aos 60. A calma voltou a Cincinnati depois de quatro dias, a Los Angeles em cinco e a Oakland em uma semana. Por outro lado, em Ferguson as mobilizações já duraram mais de duas semanas. Em Cincinnati, como em Ferguson, foi imposto um toque de recolher para tentar acabar com os distúrbios.
Ethelbert Miller, diretor do Centro Afro-americano de Howard – a universidade de Washington que é um emblema para a comunidade negra nos EUA –, argumenta que agora há elementos inexistentes há uma década que amplificaram os protestos no Missouri. “Há um presidente e um procurador-geral negro, que estão nas redes sociais e tudo aumenta de tamanho”, sustenta. “Ferguson aglutina os problemas de toda a comunidade negra do país, como a brutalidade policial e o desemprego.”
Por outro lado, Schneider atribui a extensão dos distúrbios à equivocada gestão das autoridades locais. Sua tese é que a experiências de protestos raciais anteriores demonstra que o que mais acalma a família e a comunidade do falecido é que desde o primeiro momento as autoridades atuem com transparência e prometam justiça ao mesmo tempo em que se apoiam nos líderes comunitários. Em Ferguson, a opacidade, o silêncio e as contradições oficiais brilharam por seu excesso. Uma lição para o futuro.
Entrevista com Angela Davis na prisão, em 1970. Veja o vídeo:
O contexto, no entanto, é diferente. A proibição por lei, em 1964, da discriminação racial é, 50 anos depois, uma realidade consolidada. A chegada de Barack Obama à Casa Branca é a melhor prova.
Mas algumas coisas não mudaram. “Há causas similares” entre os protestos nos anos 60 e Ferguson, aponta Cathy Lisa Schneider, professora na Universidade Americana em Washington e autora de um livro recente sobre distúrbios raciais nos EUA e na França. “Quase sempre foram provocadas pela morte de uma pessoa de minoria racial nas mãos de um policial”, explica em entrevista telefônica. Em Ferguson, 2/3 da população é negra, mas os cargos políticos e policiais estão ocupados quase exclusivamente por brancos.
É uma realidade que prevalece em outras localidades do Meio Oeste do país. Os mesmos antecedentes se repetem na maioria das mobilizações raciais que sacudiram os anos 60.
200 mortos em conflitos raciais
Em todas “havia crescentes incidentes de violência policial” até que aconteceu um detonador que desata uma indignação acumulada. Então, sustenta Schneider, o modus operandi costuma ser parecido: os protestos começam pacificamente, mas uma resposta equivocada política e policial acende os ânimos. “Vemos como as autoridades locais se mostram impermeáveis às demandas” de outra comunidade racial que “carece de influência política”.
David Garrow, professor de direito na Universidade de Pittsburgh e autor de vários livros sobre o movimento dos direitos civis, sublinha que os distúrbios por motivos raciais em Ferguson ficam muito distantes da gravidade – em manifestantes mortos e detidos, e destroços públicos – dos ocorridos nos 60 por todo o país e em 1992, em Los Angeles. Mas ele acha que os protestos no Missouri são os mais importantes desde os de Los Angeles, uma cidade 183 vezes mais populosa.
Entre 1964 e 1971 aconteceram mais de 750 distúrbios raciais nos EUA, com choques entre a polícia e cidadãos negros. Provocaram ao redor de 200 mortos, 1.300 feridos e deixaram muitos bairros em ruínas. Garrow coincide que, apesar do final oficial da segregação racial, a “má conduta” policial e a falta de diversidade étnica entre os agentes eram um “problema” na época e continua sendo agora.
Apesar de que as roupas e os equipamentos evoluíram, algumas imagens da atuação policial em Ferguson são muito parecidas às dos protestos de negros em Birmingham (Alabama) em 1963. Mas o professor considera que a maior semelhança é com os distúrbios no final dos 60 no norte dos EUA: “O movimento dos direitos civis no sul, entre 1963 e 1965, foi quase totalmente pacífico, apesar de lembrarmos das imagens de policiais com cachorros e golpeando as pessoas”, lembra. “Mas os que vemos em Ferguson, com a atitude violenta de alguns manifestantes e uma polícia de estilo militar, são imagens muito parecidas às revoltas de 1967 e 1968 no norte”, acrescenta em referência a Detroit, Newark ou Washington.
A Guarda Nacional do Missouri (a polícia estatal) foi enviada por três dias em Ferguson. No final dos 60 fez isso em Washington. E em 1992, em Los Angeles, junto com mais de mil marines e soldados. Apesar desta analogia com a cidade da Costa Oeste, a gravidade é incomparável: ali, a absolvição de quatro policiais que tinham golpeado um taxista negro desatou uma onda de fúria que deixou 55 mortos, mais de 2.000 feridos e um bilhão de dólares em perdas materiais.
Em Ferguson, desde a morte de Michael Brown, dia 9 de agosto, perto de duas centenas de pessoas foram detidas e mais de uma dezena de lojas saqueadas. Até o momento, não há manifestantes mortos. Nesta segunda-feira, foi realizado o funeral de Brown na Igreja Missionária Batista do Templo Amável em Saint Louis, perto do Missouri.
Depois de Los Angeles, os distúrbios raciais mais relevantes foram os de 2001 em Cincinnati – no Meio-Oeste – e de 2009 em Oakland (Califórnia). As duas cidades são entre 15 e 20 vezes maiores que o subúrbio de Saint Louis, mas a faísca que acendeu as ruas foi a mesma: a morte de um jovem negro nas mãos de um policial branco com um pano de fundo de tensão racial. Em julho de 2013, a absolvição do vigilante comunitário hispânico que matou, na Flórida, um outro rapaz negro, Trayvon Martin, desatou protestos em todo o país, mas sem incidentes.
Distúrbios de longa duração
Para a professora Schneider, a duração é o principal aspecto diferente de Ferguson em relação aos outros protestos posteriores aos 60. A calma voltou a Cincinnati depois de quatro dias, a Los Angeles em cinco e a Oakland em uma semana. Por outro lado, em Ferguson as mobilizações já duraram mais de duas semanas. Em Cincinnati, como em Ferguson, foi imposto um toque de recolher para tentar acabar com os distúrbios.
Ethelbert Miller, diretor do Centro Afro-americano de Howard – a universidade de Washington que é um emblema para a comunidade negra nos EUA –, argumenta que agora há elementos inexistentes há uma década que amplificaram os protestos no Missouri. “Há um presidente e um procurador-geral negro, que estão nas redes sociais e tudo aumenta de tamanho”, sustenta. “Ferguson aglutina os problemas de toda a comunidade negra do país, como a brutalidade policial e o desemprego.”
Por outro lado, Schneider atribui a extensão dos distúrbios à equivocada gestão das autoridades locais. Sua tese é que a experiências de protestos raciais anteriores demonstra que o que mais acalma a família e a comunidade do falecido é que desde o primeiro momento as autoridades atuem com transparência e prometam justiça ao mesmo tempo em que se apoiam nos líderes comunitários. Em Ferguson, a opacidade, o silêncio e as contradições oficiais brilharam por seu excesso. Uma lição para o futuro.
Entrevista com Angela Davis na prisão, em 1970. Veja o vídeo:
*Joan Faus é correspondente em Washington do El País, onde esta reportagem foi publicada originalmente.
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