terça-feira, 28 de outubro de 2014

O peso de um morto

28/10/2014  |  domtotal.com

Por que essa diferença brutal na aparência dos vivos e dos mortos?

Por Lev Chaim*

O homem deu 50 passos e caiu morto na rua. Um morto, você reconhece à distância, talvez pela peculiar imobilidade, cor branca-amarelada ou mesmo pelo contraste entre a inércia do corpo e o nervosismo dos vivos à volta. O sinal derradeiro de que a coisa vai mesmo mal é quando alguém se ajoelha e tenta sentir o batimento cardíaco da vítima. Mais tarde, fiquei sabendo que era um turista holandês que visitava a cidade.

Por que essa diferença brutal na aparência dos vivos e dos mortos, mesmo daqueles que acabam de morrer e ainda têm sangue quente correndo nas veias? A explicação mais simples e a mais controversa é esta: o vivo tem alma e o morto não! Aí vem alguém e solta a pergunta-bomba: o que é a alma? Cansei de pensar sobre isso e aprendi a dar esta resposta, depois de uma longa e profunda reflexão: a alma é tudo aquilo que nos deixa com a aparência de vivo.

Pode parecer boçal, simplista, mas é a pura verdade, até no sentido anatômico da questão. Ai vem alguém e pergunta: e o homem, que mesmo vivo, parece não ter alma? A isso, eu respondo: esse é como uma vela acesa à luz do sol; mesmo sabendo que a vela está acesa, você não enxerga o brilho da chama.

Pensava tudo isso quando tive a notícia da morte de um dos meus colunistas favoritos do jornal holandês, De Volkskrant, Martin Bril, de apenas 49 anos. Tudo me fez refletir sobre a transitoriedade da vida e como o fim, às vezes, está bem mais próximo do que a gente pensa. Na verdade, a vida de todos nós segue um mesmo rumo, mesmo quando tentamos ignorar a morte.

Os mortos dos massacres de nossos tempos, principalmente nas mãos dos terroristas do Estado Islâmico (EI), chocaram-me barbaridade. Mas, com o tempo, percebe-se que tudo ficou no nível ético e moral, sem vazar mais para o emocional. Até mesmo a morte daquele turista foi assim. Mas, a morte deste colunista da primeira página do jornal holandês, que lia todos os dias, deixou-me abalado. O meu dia iria agora ser diferente.

Foi como a morte de um ente querido. Ficar sem as suas colunas sobre o dia-a-dia da vida na Holanda, talvez tenha me aproximado da morte, a minha morte. Foi como a notícia dada por telefone que um amigo estava com câncer. À primeira mão, pareceu o fim do mundo. Funcionou mais uma vez como um lembrete sobre o nosso fim, coisa que tentamos, de todos os modos, ignorar ao máximo.

Depois, descobre-se que existem maneiras e maneiras de se tratar a doença e ficar bom outra vez, para se poder continuar no ritual de cada dia, como antes, ou seja: fingir que a morte seja uma coisa que só acontece mesmo com os outros.

Estou tentando arrumar palavras para conversar por telefone com esse amigo distante e doente. Sentia que tudo estava bem e que ele iria sair desta. Mas, ao ler sobre a morte súbita do meu querido colunista, vítima de um câncer intestinal, fiquei mudo, sem palavras para confortá-lo, nem mesmo a mim próprio. Alguém que enfrenta uma batalha dessas não necessita de pensamentos tão realistas como os meus. A ilusão também faz parte da vida.

Mas, hoje, essa ilusão foi embora. Primeiro, devido à morte súbita do turista à minha frente na rua. Segundo, quando fui informado da morte do colunista e depois da doença séria do meu amigo. Ao conversar com alguém sobre o assunto, a pessoa disse que essa ilusão só vai embora quando não se acredita na vida eterna, na vida da alma. Como se tivesse acordado de um pesadelo, dei um pulo, olhei-a nos olhos e respondi: mas eu acredito na alma!

Essa pessoa amiga, com os olhos sérios, serenos e de um azul profundo, encarou-me e respondeu: e quanto pesa o corpo de um homem sem alma? Fiquei sem fôlego e sem resposta. Também pudera, que pergunta mais esdrúxula.

Ao mesmo tempo, lembrei-me das palavras do livro “Rumo a uma vida significativa”, do Reb Menachem Mendel: “O mistério da morte é a parte do enigma da alma e da própria vida; compreender a morte significa realmente compreender a vida. Após a morte, a alma é libertada dos constrangimentos físicos do corpo. A verdadeira personalidade de uma pessoa – sua bondade, virtude e altruísmo – reside na alma”.

Com isto, fiquei mais tranquilo e, mais uma vez, descobri porque o morto fica tão diferente de um vivo – ele fica sem personalidade, sem a sua própria alma. E, assim, não me preocupei mais com o peso do morto, se era mais leve de quando tinha vida. Mais calmo, decidi ligar para aquele meu amigo distante. Estava pronto para falar com ele.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da Fala Brasil e trabalhou 20 anos para a Rádio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Dom Total.

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