quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Não me guardo para o Carnaval chegar

Confesso que vivi carnavais passados. Hoje me rendo finalmente a falar mal dele.

Por Ricardo Soares*

Tenho que confessar. Sempre tive um certo pé atrás para falar mal do carnaval brasileiro tido e havido como a nossa grande manifestação cultural, a síntese de um povo, a catarse de uma nação e blá-blá-blá. Apesar de sua contínua degradação, de sua transformação em festa que isola a patuléia e privilegia os ricos, de sua grande feira para promover os mesmos velhos detritos, eu continuei sempre a ter um pé atrás pra falar mal do carnaval brasileiro.

Confesso que a parte boa de ter que escrever ao menos duas crônicas semanais (fora os resíduos que faço para meu próprio blog) é fuçar assuntos e tentar não aborrecer a paciência do leitor. Aí, lendo a crônica de Marcelo Mirisola no Yahoo outro dia, achei que estava na hora de parar com esse preconceito de não falar mal do carnaval brasileiro com receio de ficar com a peja de ser mal humorado, ranzinza, etc. Afinal, desde quando eu dou bola pra torcida?

Marcelo Mirisola é um escritor com quem tenho várias afinidades. Gosto do jeito dele de desafinar o coro dos contentes, mesmo que esteja jogando lá para a torcida dele. Tem uma prosa inventiva, caustica, cortante e sei lá quantos outros lugares comuns eu possa alinhavar pra definir o que ele faz. Mas o faz bem feito e sem medo de desagradar essa estufazinha de escritorezinhos bem comportados e anódinos que virou a literatura nacional. Daí, nada especial em ver que só ele mesmo podia esculhambar o carnaval pátrio. Leiam só o que escreveu ao final de sua recente crônica sobre o assunto publicada no portal do Yahoo. Ele se pergunta para que serve o carnaval: “Para mais uma vez afagar a vaidade e o bolso da Ivete Sangalo e nazis afins? Para propagar entrevistas com subcelebridades e doenças sexualmente transmissíveis? Para incentivar o turismo sexual? Para deixar o dono da Ambev mais rico?”

Talvez seja tudo isso que Mirisola  apontou e mais um pouco. Anestesiar nosso senso crítico, achar normal que o carnaval comece uma semana antes e acabe uma semana depois do que diz o calendário. Fora justificar aquela avalanche de reportagens hediondas nos telejornais com repórteres gritando e a cambada pulando ao fundo.

Confesso que vivi carnavais passados. Pulei alguns deles quando não achava que eram enfadonhos, perigosos e apocalípticos. Hoje me rendo finalmente a falar mal dele e suas estultices, mas o faço com a maior preguiça simplesmente fazendo minhas algumas das palavras do Marcelo Mirisola, aliás um autor pouco carnavalesco. Aliás, façam o seguinte, se me permitem uma sugestão: renunciem a ver o tedioso carnaval pela televisão e leia uns contos do Mirisola, descubram Márcia Denser, arrisquem Ivana de Arruda Leite, poucos dos poucos escritores que restam nessa carnavalesca literatura brasileira que almeja apenas e sempre virar minissérie da TV Globo.
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Foi cronista dos jornais “ O Estado de S.Paulo”, “Jornal da Tarde”, “Diário do Grande ABC” e da revista “Rolling Stone”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário