terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O sonho dos meninos

A aventura de dois militantes do PT, das bombas de gás lacrimogênio à epidemia da Aids.

Por Marco Lacerda*

No final dos anos 70 a sociedade brasileira começava a se articular pelo fim do regime militar. Um dos primeiros sinais do avanço foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores, cujas atividades se concentravam no ABC paulista. O PT entrava em cena, de forma organizada, a partir da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país, para transformá-la. Aproximava-se o fim da ditadura. 

Durante férias no Brasil, vindo de San Francisco, onde morava, participei de uma manifestação do PT em São Bernardo do Campo, onde conheci Maurício, um militante da ala jovem do partido, a Libelu (Liberdade e Luta), uma ruidosa facção ligada ao movimento estudantil. Naquela tarde em São Bernardo os ânimos estavam acirrados e o confronto com a polícia foi inevitável. Sentado no capô do carro de reportagem de uma emissora de TV, junto a outros jornalistas que faziam a cobertura, eu observava Maurício. 

À primeira vista ele era uma sombra a mais entre as muitas sombras naquela arena de conflito. Usava uma máscara para se proteger do gás lacrimogêneo, enquanto recolhia as bombas jogadas pelos policiais nos grevistas e as atirava de volta nos meganhas com a ajuda de um pedaço de feltro enrolado na mão. Tirei um par de luvas de couro que trazia na mochila e o lancei em sua direção. Quando viu cair aos seus pés o artigo que mais precisava na operação, Maurício ergueu o polegar em sinal de agradecimento e continuou seu trabalho até a manifestação terminar, horas depois, com muitos manifestantes presos e alguns feridos. 

Depois que os ânimos serenaram, caminhamos a esmo pelas ruas áridas de São Bernardo do Campo. Trocamos um breve resumo dos meus 26 anos e dos 21 dele. Descendente de italianos, Maurício fora criado na Casa Verde, em São Paulo. Viajava de ônibus todos os dias para trabalhar na linha de produção da Volkswagen. Deixara o curso de Economia pela metade e, antes de ingressar no Partido dos Trabalhadores, recém-saído da adolescência, já lutava na clandestinidade por um Brasil sem a pobreza e o desamparo dos quais ele mesmo era vítima. 

Caminhamos e conversamos enquanto consumíamos os cigarros até quase queimar os dedos. Era preciso uma segunda olhada para descobrir a beleza discreta de Maurício, a graça dos seus gestos e a expressão límpida dos seus olhos que fazia tudo ao seu redor parecer sujo. Do que lhe contei a meu respeito nada o impressionou tanto quanto a argolinha de ouro que eu usava na orelha esquerda. Quando demos por nós, estávamos no pátio da Volkswagen, depois de entrar por um portão lateral ao qual só os funcionários tinham acesso. 

Por alguns minutos intermináveis, sequer nos olhamos, espantados pela proximidade um do outro. Sentados no chão de asfalto, entre fileiras de carros encalhados pela greve, nos acariciamos sem pressa entre palavras brandas, nos despimos um ao outro devagar, com ternura sossegada e uma felicidade parecida com o amor. Não sabíamos o que estávamos fazendo, fomos inventando, hesitantes, guiando-nos mutuamente numa mistura de medo e carinho. Aos 26 anos eu era uma enciclopédia de pornografia, mas tão virgem quanto Maurício em matéria de amor. Não importava o que acontecesse depois, eu levaria comigo aquela noite em São Bernardo para recordar para sempre.
 
O pouco dinheiro que Maurício ganhava na Volkswagen dava apenas para ajudar nas despesas da família. Não sobrava nem pra cerveja. A precariedade do seu vestuário revelava a penúria em que ele vivia. Ao sentar-se não cruzava as pernas para esconder os buracos nas solas dos sapatos. Mesmo no calor mais inclemente, não tirava a jaqueta para não deixar à mostra as camisas remendadas e as mangas que não coincidiam no comprimento. Acordava cedo em manhãs geladas, sem roupa de inverno, para panfletar em portas de fábricas, antes do expediente, convocando companheiros a se levantarem contra os abusos e violações dos seus direitos em duas décadas de regime militar. 

Apesar da dureza em que vivia, Maurício não aceitava convites nem favores que não pudesse retribuir. Quando propus irmos juntos para San Francisco, ele recusou minha oferta de pagar a passagem. Preferiu vender o pouco que tinha: um pequeno busto de Trotsky de bronze, uma televisãozinha em branco e preto, uma bicicleta surrada e alguns livros de Vladimir Maiakovsky. Poucos meses depois de nos conhecermos, Maurício se demitiu do emprego na Volkswagen e, com seu vocabulário de meia-dúzia de palavras em inglês, partimos juntos para San Francisco. 

Era bem outra a realidade que encontrei. A Aids acabara de surgir e o pesadelo era sentido em San Francisco com mais força que em qualquer outra parte Como líder espiritual numa cidade que abriga a maior comunidade gay do mundo, Taizen, mestre Zen com quem eu estudava havia anos, enfrentava o desafio de apoiar essa comunidade em seu momento mais difícil. As perdas eram diárias e, como monge, Taizen era chamado com frequência para celebrar funerais.
 
“Garotos estão morrendo no fulgor da energia”, disse ele no dia em que nos reencontramos. Chegou-se a pensar que a Aids era uma epidemia com preferência sexual, pois só atacava homossexuais masculinos. A doença deixava um rastro de medo. Será que eu estou contaminado? E ele? Devo fazer o teste? E se der positivo, todo mundo vai ficar sabendo? Perguntas como essas, hoje corriqueiras, na época devastaram San Francisco. A Aids roubou a alegria da cidade. No lugar, deixou paranoia, confusão, luto numa comunidade ao mesmo tempo obcecada e aterrorizada pelo sexo.
 
Não havia tratamento. As pessoas contaminadas pelo vírus ficavam à mercê dos golpes impiedosos da doença e quando chegavam aos estágios finais eram relegadas ao abandono e ao esquecimento. Para vencer uma guerra, muitas vezes é preciso começar outra. Por decisão de Taizen, na região de São Francisco conhecida como Castro – um aglomerado de bares, boates e restaurantes – foi inaugurada a Karuna, que em sânscrito quer dizer “compaixão”, uma casa voltada para a assistência às vítimas da Aids. Um monge foi designado responsável pela residência e muitos se apresentaram para ajudar. Recém-chegados do Brasil, Maurício e eu nos oferecemos como voluntários.
 
Com o primeiro aidético ocupando um dos quartos, a Karuna passou a atrair simpatia externa. Quando alguém morria de Aids na cidade, apareciam na residência cadeiras de rodas, camas de hospital e suprimentos médicos deixados pela vítima. Taizen mandou então um recado à comunidade gay: estava em condições de receber mais doentes. Quando a casa começou a se encher de vítimas desfiguradas pela doença, muitos voluntários vacilaram e bateram em retirada, aturdidos pelo desafio de conviver com aquela face medonha do sofrimento humano. A Aids era uma prova da vocação democrática da morte quando se trata de dividir a dor.
 
Para manter-me em São Francisco voltei a escrever para jornais e revistas brasileiros, enquanto Maurício trabalhava na padaria mantida pela Zen House e aproveitava para melhorar o inglês. A presença de Maurício na Karuna era uma injeção de ânimo. Seu bom humor invencível levava todos a reagir positivamente. Quando um doente já não podia mais falar, Maurício permanecia ao lado dele, segurava suas mãos pelo tempo que fosse preciso, até o último suspiro. Em alguns casos, mais que os doentes, eram familiares e amigos os que precisavam de ajuda. Quando o desenlace era inevitável – e sempre era –, parentes e amigos tinham de lidar, não raro pela primeira vez, com o desafio de encarar a vida sem uma pessoa querida.
 
Foi uma época de sofrimento descomunal, mas não nos deixávamos abater pelo pânico ou pelo sentimento de que a morte é uma injustiça inexplicável. Com a ajuda de Taizen, procurávamos aceitá-la com a serenidade ao nosso alcance. Para os pacientes muito jovens era difícil abrir mão dos planos de vida, dos projetos para o futuro. Mesmo à beira da morte, alimentavam a esperança de que seriam poupados na última hora, que uma exceção seria aberta para eles. A presença de Taizen era um divisor de águas.
 
“Ninguém vai morrer só porque está doente, todos vamos morrer”, ele disse uma vez. “Quando aceitamos isso, que podemos morrer hoje mesmo ou amanhã, passamos a morrer a cada instante. Só assim, livres da ilusão de que possuímos nossas vidas, podemos viver plenamente cada instante. Pena que tenha sido necessária uma epidemia para nos ensinar isso”.
 
Quando Maurício e eu voltamos dos Estados Unidos a Aids ainda era uma crise distante do Brasil. Logo o círculo foi se fechando. Começaram a morrer conhecidos, depois amigos próximos, colegas, parentes, até que minha agenda telefônica acabou por se transformar num obituário, um catálogo repleto de ausências. Por fim a doença atingiu Maurício. Mais uma vez acompanhei cada passo desse vírus inimigo do amor, as febres que lhe queimavam as vísceras, diarreias repugnantes que tragavam suas energias, infecções corrosivas. Até que do militante apaixonado do Partido dos Trabalhadores só restou um esqueleto demente sobre a cama, um monte de ossos embrulhados numa camada de pele suficiente apenas para impedir que sua alma fugisse. Nenhum morto que eu vi parecia tão morto quanto Maurício nos últimos dias de vida. Doía ver a decrepitude a que ele chegara antes de completar 30 anos.
 
A última lembrança que guardo é do dia quando, ainda com os movimentos dos braços, ele me devolveu o par de luvas que eu lhe arremessei, anos antes, durante aquela manifestação em São Bernardo do Campo. Espetada numa delas estava a estrela vermelha do PT que ele sempre usou com galhardia na lapela, como se fizesse parte do seu corpo. Por fim, cravou-me na orelha sua argolinha de ouro, símbolo da nossa amizade, das nossas lutas e sonhos hoje transformados em pesadelos que ele não sobreviveu para testemunhar. Lembro com nitidez a insondável tristeza em seus olhos, por estar abandonando o barco no melhor da viagem. Um pedaço de mim morreu com Maurício.

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