segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O trapista que não podia ser silenciado

O monge Thomas Merton era um buscador da santidade, não da santificação.

Por Danny Sullivan*
Merton (com o Dalai Lama, em 1968): "O caminho espiritual é abandonar a si e se perder em Deus".
Enquanto celebramos o centenário do nascimento de Thomas Merton (1915-1968), muitos são os que o têm como um exemplo da fé católica. Ninguém acharia isto mais engraçado do que o próprio Merton, pois o monge trapista era um buscador da santidade, não da santificação. Deixe-me explicar.

A visão modesta de Merton sobre si mesmo está clara em sua correspondência com o grande amigo Robert Lax, poeta americano. As assim-chamadas “anticartas”, escritas num estilo cômico, mostram que Merton achava hilária a noção de ele ser um modelo para os demais. Ele entendia que a essência do caminho espiritual era abandonar a si e se perder em Deus. A vida espiritual não tinha a ver com encher o ego, mas em ter compaixão e amor pelos outros, pois em todas as pessoas com as quais nos deparamos encontramos a Cristo. Bob Lax acreditava nisto também, e passou muitos anos vivendo como eremita em Patmos, ilha grega mencionada no Livro de Apocalipse.

O legado de Thomas Merton tem sido calorosamente disputado desde a sua morte prematura na Tailândia, em 1968. Quando a Igreja Católica nos EUA estava montando um catecismo para adultos em 2005, a vida e obra de Merton tiveram destaque no rascunho inicial.
Então, dois escritores – o Mons. Michael Wren e Kenneth Whitehead – publicaram uma crítica severa sobre a decisão de se incluir Merton no texto. Eles o descreveram como um “monge faltoso”, que vagueava pelo Oriente “em busca de consolo na espiritualidade não cristã”. Eles também se referiram a Merton com um “religioso que havia abandonado o seu mosteiro”.

Estas afirmações eram infundadas. Qualquer pesquisa, a mais básica que fosse, revelaria que Merton morreu como um monge da Abadia de Gethsemani em Kentucky, onde está enterrado. Quando morreu, resultado de um acidente trágico envolvendo um ventilador elétrico estragado, ele estava participando de um congresso inter-religioso em Bangkok com o pleno apoio de seu abade. Enquanto esteve na Tailândia, diligentemente observou o ofício monástico, celebrou missas diárias e vestiu o hábito na maioria das ocasiões. Nada mal para um “monge faltoso”.

Surpreendentemente, os bispos americanos levaram a sério a crítica feita a Merton. O seu nome foi retirado do texto final, supostamente com “base no equilíbrio de gênero”. Seguiu-se uma vívida polêmica, e uma petição foi feita para que Merton fosse reinserido no texto. Mas o catecismo americano acabou aparecendo sem a seção a Merton. No momento em que marcamos, no dia 31 de janeiro, os 100 anos desde o nascimento de Merton, vale a pena refletirmos sobre o motivo que faz sua vida e obra ainda provocarem tais reações intensas e contraditórias.

A montanha dos sete patamares

Merton perdeu a mãe quando era criança, e seu pai morreu quando ele era adolescente. Viveu várias vezes na França e na Inglaterra, e depois nos EUA. Ele não fora educado num ambiente religioso, embora seu pai tenha sido um artista e, certamente, uma pessoa espiritual.

Na Inglaterra, Merton viveu sob a orientação de um tutor que perdeu a paciência com ele durante os seus anos – um tanto dissolutos – em Cambridge. Foi mandado para os EUA, onde estudou na Columbia University. Aqui, fez amigos para toda a vida e alguns professores influenciaram-no em sua busca espiritual.

Merton converteu-se ao catolicismo, juntando-se aos trapistas em Kentucky. O seu primeiro abade logo reconheceu os dons de escritor dele e o incentivou a desenvolvê-los. Isto o levou a escreve a famosa autobiografia “A montanha dos sete patamares” (publicada na Inglaterra como “Elected Silence” [O silêncio eleito], com um prefácio de Evelyn Waugh. A obra se tornou um best-seller e inspirou inúmeras pessoas a entrarem na vida religiosa.

Até aí tudo bem, mas a vida, evidentemente, não é tão fácil assim, nem mesmo para os monges contemplativos. Aos poucos, Merton percebeu que partes da autobiografia idealizaram a vida monástica. Em particular, ele meio que se arrependeu do comentário famoso segundo o qual em seu mosteiro ele teria encontrado “o centro dos EUA”, pois aí, em oração e em silêncio, estava a vida autêntica.

Acabou entendendo que todos estamos intimamente conectados como filhos e filhas de Deus, e que não precisamos ser monges ou freiras enclausurados para levarmos uma vida contemplativa. De forma comovente e reveladora, ele falou da “ermida do coração”, explicando que mesmo em nossa vida ocupada do dia a dia nós podemos encontrar um tempo para o silêncio e reflexão.

Merton continuou escrevendo e um leque amplo de pensamentos e reflexões surgiram a partir de sua vida monástica disciplinada. A maioria destes falava sobre a busca por Deus. Este aspecto profundo de Merton ficou, em geral, perdido, já que as pessoas tendem a se focar em sua personalidade, analisando demasiado o seu caráter enquanto negligenciam os seus insights para dentro da vida espiritual. (Há notáveis exceções, incluindo o livro “Divine Discontent” recém-publicado por John Moses, reitor da Catedral de St. Paul, em Londres.)

No final da década de 1950 e início da década seguinte, os escritos de Merton começaram a refletir um compromisso com a justiça pelos pobres, com os direitos civis para os negros e com o movimento pacifista. Tudo isso surgiu a partir de sua vida monástica bem como da teologia católica. Não é à toa que tanto São João XXIII quanto o Beato Paulo VI tinham um profundo reconhecimento por seus escritos e se comunicavam com ele.

Aqueles que se sentiram desconfortáveis com estes escritos o rotularam de “político” e conseguiram fazer-lhe parar de publicar textos sobre questões de paz. Merton levou esta crítica ao pé da letra e não mais publicou coisa alguma sobre tais assuntos. Mas escreveu cartas sobre a paz a amigos e os incentivou a partilhá-las com os demais. Estas acabaram sendo publicadas como “Cartas da Guerra Fria”. Quando perguntaram a Merton o que ele pensava sobre a famosa encíclica de João XXIII “Pacem in Terris”, que parecia compartilhar muitas das opiniões de Merton, ele respondeu: “Sorte que o Papa João não é um trapista!

Merton teve a permissão de se corresponder mais do que o normal para um monge trapista. A sua correspondência reflete a profundidade da experiência que ele absorveu a partir do silêncio e da meditação.

Ele também se envolveu com outros cristãos, realizando debates interdenominacionais no mosteiro em que vivia já em 1950. Hoje, Merton é lembrado no calendário anglicano no dia 10 de dezembro, data de sua morte. Os anglicanos parecem ter um enfoque mais aberto, já que eles se preocupam não com canonizações, mas com o testemunho de pessoas que valem ser lembradas, muito embora tiveram imperfeições. Isto parece ser mais verdadeiro do que a convicção de que apenas a perfeição é válida de imitação.

Merton também abriu-se aos muçulmanos, hindus e budistas. Tinha uma afinidade especial com o aspecto contemplativo destes últimos e foi reconhecido pelos budistas como um dos poucos ocidentais que verdadeiramente compreenderam a tradição de Buda. O curto prefácio de Merton no livro “O Zen e as aves de rapina” é considerado como um dos mais belos resumos da tradição Zen já escrito.

O poder de mudar vidas

Enquanto esteve na Ásia, ele se encontrou com o Dalai Lama três vezes. Estes encontros foram marcados por muita cordialidade e risos. O líder tibetano disse que foi somente após conhecer Merton que ele começou a apreciar o cristianismo por completo. Sempre que está nos EUA o Dalai Lama visita o mosteiro de Merton e passa um tempo em seu túmulo. Não há dúvidas de que Merton foi um ser humano falível (como todos nós). Mas aqueles que se indignaram com o fato de ele ter escrito sobre a questão da justiça para com os pobres não conseguem enxergar o cerne do Evangelho naquilo que ele tem a dizer. Outros ficaram escandalizados pelo fato de ele ter se apaixonado, no final da vida, por uma freira que estava atendendo-o num hospital local. Ele, porém, não tentou esconder esta experiência humana única e como ela conformou a sua vocação de monge.

Poucos críticos de Merton percebem que ele foi fundamental para a introdução da vocação eremita aos cistercienses. Ele acabou tendo a permissão de viver num eremitério, embora continuasse bastante ocupado. O seu amigo Jim Forest, que escreveu uma bela biografia sobre o monge, provocativamente o descreveu como “o eremita da Times Square”.

Os últimos escritos de Merton desfazem a afirmação de que ele fora um “monge faltoso”. A sua obra “O diário da Ásia”, publicado postumamente, mostra-o refletindo profundamente sobre o seu “lar” na Gethsemani e o seu gosto pela comunidade dos trapistas locais.
Ao me preparar para escrever este artigo, fui a uma livraria religiosa em Londres e encontrei um punhado de livros sobre Merton e alguns escritos por ele mesmo. Em seguida, fui ao Foyles [grande rede de livrarias na Inglaterra] e, na seção Religião, encontrei 22 livros sobre ou do próprio Merton. A gerente falou que os livros de Merton vendem tão bem que esta seção precisa ser constantemente atualizada.

Na verdade, melhor seria se menos livros fossem escritos sobre ele e que as pessoas fossem diretamente aos seus escritos. Pois ele nos fala sobre a nossa necessidade de Deus, e de como o amor de Deus deveria inflamar os nossos corações e mentes para o amor compassivo por nossos companheiros, em especial os mais necessitados. Como Bob Lax escreveu: “A maior coisa que podemos fazer nesta vida é cultivar e vivenciar a compaixão. A vida tem a ver com adentrar o coração e torná-lo a fonte de nosso ser”.

Os escritos de Merton ainda têm o poder de mudar vidas, guiar a Deus aqueles que o buscam, o Deus que os ama sem reservas e os chama a amar os seus companheiros humanos. Esta è a vocação oculta de Thomas Merton, que continua tão marcante um centenário após sua morte.

A última conferência de Thomas Merton. Veja o vídeo:
*A reportagem de Danny Sullivan foi publicada por Catholic Herald. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

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