segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Na calada da noite

O estilo "noir" de romance policial evolui e incorpora novos temas, geografias e tecnologias.
Por Marco Lacerda*
Um crime, um assassino, mulheres belas e traiçoeiras, um detetive cínico e sarcástico que não ama ninguém a não ser ele mesmo (mas que sempre acaba se apaixonando por uma bela suspeita), policiais corruptos, uma cidade grande cheia de solidão. Este é o cenário perfeito para uma história do tipo “noir”.
O estilo literário surgiu nos Estados Unidos pouco depois da primeira guerra mundial e era publicado nas chamadas revistas pulps, de papel barato e gosto duvidoso. Os melhores escritores do gênero policial de todos os tempos passaram por estas revistas e deixaram histórias fantásticas, cheias de suspense, romance e sarcasmo. Eles influenciam grandes mestres até hoje. É o caso de Stephen King e Quentin Tarantino – o nome do filme “Pulp Fiction” é uma homenagem às revistas pulp americanas.
A palavra francesa “noir” quer dizer negro, escuro. Exatamente como o ambiente retratado nos livros e nos filmes do gênero. Este tipo de literatura é também uma crítica à sociedade americana e ao estilo de vida das grandes cidades. Tramas repletas de crimes, ação alucinante, tipos durões de raciocínio rápido, autoridades corruptas e mulheres traiçoeiramente fatais. Os personagens são ricos: trágicos, às vezes divertidos, deprimidos ou conformados. Figuras que, sabe-se lá como, conseguem sobreviver à violência urbana e ao destino sombrio nas metrópoles de qualquer grande centro urbano do mundo.
O estilo “noir” deu origem a um campeonato literário de primeira divisão que não teve muitos campeões. Raymond Chandler, Dashiel Hammett, James Elroy e Patricia Highsmith – sem falar de Conan Doyle e Agatha Christie – se tornaram grandes com o aplauso do público, mas sem grande reconhecimento porque o romance policial era um gênero menor, dirigido a boêmios. Hoje, está na moda e seu reconhecimento ultrapassa às vezes a própria qualidade da obra publicada porque, além da primeira divisão existe a segunda, terceira e até a quinta, e nem sempre estão diferenciadas. Mas o certo é que o “noir” e seus autores crescem ao calor de prêmios (Leonardo Padura, Jorge Zepeda, Alicia Giménez Bartlett e Víctor del Árbol para citar alguns, do sucesso e de uma renovação galopante ao ritmo dos tempos. Sua apropriação pelo cinema e vice-versa também desempenhou papel relevante, já que as duas linguagens se alimentam de uma representação visual comum, próxima ao público, e de uma sintonia que dividem intensamente com o espectador/leitor.
O gênero “noir” progrediu à medida em que a realidade evoluiu, incorporando temas que antes não existiam. O mal de Alzheimer, por exemplo, há 10 ou 12 anos não se sabia bem o que era e agora já existem cinco romances nos quais a doença é elemento fundamental. Hoje temos romances que se passam na Lapônia, em  países subsaarianos e nas profundezas de florestas do Canadá.
O que o “noir” conseguiu, sobretudo, foi desenhar um novo mapa do mundo no qual mesmo sem a Wikipedia, sem lições de geografia e política, sem jornais à disposição, qualquer um pode se inteirar da truculência à qual são expostas as mexicanas que entram nos Estados Unidos através de uma fronteira sinistra (Yuri Herrera); da crueldade da Operação Condor, que fulminou milhares de jovens esquerdistas na América do Sul pelas mãos do terrorismo de Estado (Santiago Roncagliolo); as negociatas e corrupção da Sicília (Andrea Camilleri); da grosseira destreza dos funcionários chineses corruptos (Qiu Xiaolong); da perfídia vital do modelo de família numerosa com altas doses de alcoolismo, abuso e precariedade na Irlanda (Tana French, Benjamin Black); das falhas do aparentemente perfeito Estado de bem-estar social dos países nórdicos (Henning Mankell, Stieg Larsson); do submundo de Los Angeles (Michael Connolly) e da ríspida hostilidade do clima e da natureza da Islândia (Arnaldur Indridason).
“O “noir” se tornou mais sociológico e cultural e por isso é mais atraente para leitores de todo o mundo”, afirma o editor chinês Qiu Xiaolong (Tusquets). “Os romancistas noir se transformaram em romancistas nacionais. Os autores cruzam fronteiras ao não cruzá-las, mantendo-se fiéis às preocupações de seus países”, diz o peruano Santiago Roncagliolo (Alfaguara). “Estamos na era pós-moderna, no sentido de que foi eliminada a hierarquia entre cultura popular e alta cultura”, afirma o francês Bernard Minier (Salamandra). “O romance noir se transformou em um gênero social”, diz o polonês Zygmunt Miloszewski (Alfaguara).
O gênero “noir” se desenvolve à medida que os delinquentes aperfeiçoam seus métodos. Os temas aumentaram, do crime estilo tragédia grega ao narcotráfico, a corrupção e a espionagem industrial. A qualidade também evoluiu, mas nem sempre é acompanhada pela quantidade que hoje chega às livrarias. Existe mais qualidade, mas com uma quantidade maior também existe mais mediocridade.
A atual explosão do “noir” é uma realidade, e tem um motivo apontado pela editora Anik Lapointe: “É um gênero extremamente manejável, dotado ao mesmo tempo de bases estruturais muito definidas e uma grande flexibilidade. É capaz de absorver e incorporar elementos de diversos gêneros sem perder sua identidade”. E essa característica de esponja o enriquece sem que perca seu caráter.
“O Falcão Maltês”, o grande clássico do cinema “noir”. Veja o trailer:
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Domtotal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário