As alternativas para superar a crise e os problemas que estamos vivendo só podem ser estruturais.
A crise política que vivemos no Brasil traz desafios também para o campo jurídico e para toda a sociedade. Os dados recentes advindos da Operação Lava Jato, mesmo que involuntariamente, evidenciaram que a realidade particularizada que se buscava investigar é altamente complexa, trazendo dúvidas sobre a viabilidade de utilização de um ordenamento jurídico construído sob a base da simplificação e individualização dos conflitos e das violações da lei.
Com as listas da Odebrecht sobre suas contribuições financeiras para partidos e políticos de quase todas as vertentes, tornou-se clara a amplitude e complexidade da estrutura jurídico-política que tem sustentado uma prática ampla de corrupção há décadas, pelo menos desde os anos 1980. Mesmo que os objetivos da Lava Jato não fossem esses, chegou-se à confirmação do que o povo já imaginava: da forte vinculação entre os grandes grupos econômicos e o financiamento legal e ilegal de campanhas, uma óbvia fonte de corrupções na própria gestão pública no Brasil, e muito provavelmente em todos os países com o financiamento privado das campanhas políticas.
Ora, se as pessoas percebiam há décadas que a corrupção era uma realidade presente na gestão dos poderes municipais, muitas vezes impostas por grupos com forte poder de coerção atuando na venda de equipamentos ou máquinas às prefeituras, como os órgãos do Poder Público não sabiam disso? E se sabiam, qual o motivo de não terem sido tomadas providências administrativas e judiciais? Tudo indica que os poderes constituídos eram coniventes com essas realidades, seja porque integrantes desses poderes participavam de alguma maneira daqueles processos, inviabilizando apurações efetivas, seja por considerarem ser muito difícil e “perigoso” lutar com estruturas de poder muito consolidadas.
Surgem então algumas questões de cunho ético-jurídico: teria sentido condenar somente uma pequena parcela de todos os envolvidos nesses procedimentos? Se órgãos públicos não atuaram ou se omitiram, por motivos os mais diversos possíveis, frente a uma realidade e estrutura que favoreciam a corrupção, qual deveria ser a amplitude das investigações? Condenar somente os políticos e partidos de uma determinada tendência, ou somente aqueles envolvidos em situações mais recentes, é algo aceitável? Que não se engane o conjunto dos políticos que tenta fazer um acordo para indicar culpados de algo que todos estão envolvidos, pela própria estrutura política que se criou. Os setores políticos que em determinado momento possam parecer minoritários, sobretudo pelo domínio da grande mídia, não permitirão que as investigações fiquem limitadas a uma pequena parcela dos envolvidos.
Percebe-se mais claramente agora que, apesar de termos diferenças significativas entre os políticos e suas posições ideológicas, o que possibilitou o grau de corrupção que vivenciamos na gestão pública brasileira é algo estrutural. Portanto, as alternativas para a superação da crise e dos problemas que estamos vivenciando só podem ser estruturais. Essa realidade ampla, pulverizada e complexa, que se constituiu a partir de realidades contextuais que foram se complexificando, e que, justamente por isso, não podem ser adequadamente individualizadas em processos criminais, a não ser através de análises parciais e com risco de politização do Direito, evidencia os limites do Direito penal e do próprio Direito para tratar realidades complexas.
Diante dessa realidade e dos desafios que se colocam, em termos jurídicos, muito mais que algumas condenações penais que possam ser apresentadas como sinais para a classe política e com o intuito de dar respostas parciais para parte de uma sociedade dividida, talvez caiba negociações gerais em termos de ajustamento de condutas - TACs, alternativa que vem sendo utilizada pelo Ministério Público para casos em que a pura aplicação da lei pode se mostrar pouco vantajosa em termos sociais, políticos e/ou culturais. Evidentemente, a aprovação político-jurídica de realização desses termos de ajustamento implicaria uma construção da qual participariam representantes dos poderes públicos constituídos e setores representativos da sociedade, de forma que a crise política, econômica e, em certo sentido, também institucional, possa ser suplantada com a construção dessas pontes ou perspectivas para o futuro da sociedade brasileira.
Assim, mais que apontar culpados por essa situação que foi sendo construída nesse processo de conivências históricas entre os poderes, levando à ampliação e consolidação de uma estrutura ilegal paralela ao ordenamento jurídico, trata-se de construir estruturas jurídico-políticas que possam permitir a superação da crise e novas possibilidades de organização social e política, com respeito e efetivação do conjunto dos Direitos Humanos. Evidentemente, a construção de uma outra estrutura para nortear as relações políticas e partidárias exigirá uma reforma política com ampla participação dos diversos setores da sociedade.
Certo, nesse contexto, uma possível aprovação de um processo de Impeachment - altamente questionável, sobretudo pelos interesses, incertezas e receios políticos que não só descaracterizam, mas inviabilizam a participação em um processo racional e fundado em princípios democráticos e jurídicos por parte dos deputados e senadores neste momento - significaria a inviabilização dessa proposta de utilização desse método mais construtivo e menos punitivo; pois significaria uma clara tentativa de, responsabilizando uma minoria, buscar abafar ou superar a crise; sem transformações significativas na estrutura jurídico-política; o que levaria à intensificação dos conflitos e da divisão política.
Assim, nesse contexto complexo e de crise, acreditamos que caberia aos órgãos do Judiciário, em especial ao STJ e ao CNJ, uma conversação e análise proativa da realidade jurídica e política atual, de forma a indicar essa possibilidade de construção dessa ponte jurídico-política para o futuro, já com seus princípios de base, de forma a que se permita maior previsibilidade dos procedimentos futuros, buscando não a punição individualizada de cada um, mas uma solução que aponte para acertos e regramentos individuais, sobretudo em termos restitutivos, e que aporte os novos compromissos da classe política e jurídica com a sociedade, indicando novas regras que deverão nortear possibilidades concretas de superação da estrutura facilitadora das ações ilegais que se instituíram nas últimas décadas.
Mais uma vez, ficam evidenciados os limites do Direito frente à individualização de conflitos em questões complexas da sociedade, mas também os desafios, possibilidades e urgências do Judiciário e do Direito frente a esse complexo cenário da realidade social, cultural, política e jurídica da sociedade brasileira.
*João Batista Moreira Pinto é pós-doutor em Direito pela Université de Paris X; professor da Graduação e do Mestrado da Escola Superior Dom Helder Câmara; diretor do Instituto DH: Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania.
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