terça-feira, 8 de março de 2016

O afinador de pianos

Enquanto ouvia o dedilhar no piano, apertar e desapertar as chaves, meu pensamento voou longe.
Por Lev Chaim*
Fui ao museu da minha cidade para deixar o afinador de pianos entrar, pois no domingo, estaria acontecendo ali um concerto, às 11 horas da manhã. Enquanto ouvia o seu dedilhar no piano, apertar e desapertar as chaves, nota por nota, meu pensamento voou longe, para o dia em que eu e uma amiga fomos à cidade de Den Bosch, há poucos quilômetros daqui. 
Na Idade Média, ele foi o homem que deu cores ao inferno e retratou a ganância da humanidade. Refiro-me ao pintor holandês Jheronimus Bosch (1450-1516) ou simplesmente como os holandeses o conhecem, Jeroen Bosch. Em Den Bosch, sua cidade natal, está acontecendo uma grande retrospectiva de sua obra, com quadros e desenhos que vieram de todas as partes do mundo, para marcar os 500 anos de sua morte.
Uma amiga e eu havíamos comprado os ingressos há três semanas e marcamos a nossa entrada no Museu Noord Brabant, entre 13 e 14 horas. Fora deste horário, nosso ingresso não valeria mais. Organização holandesa para conter um pouco a avalanche de visitantes. As poucas entradas que estavam para ser vendidas na porta para aquele dia já haviam se esgotado. Sorridentes marchamos porta a dentro. Era uma segunda e acreditávamos que não deveria estar muito cheio. Que esperança!
Num ambiente meio escuro, monástico, com iluminação forte nos quadros, esbarrávamos o tempo todo em gente que ia e vinha. Além do que, vimos partes dos quadros entre os vãos de uma cabeça e outra das dezenas que se postavam à frente das telas. Um monstrinho aqui outro ali, figuras humanas minúsculas, desnudas e aves raras comendo gente, tudo parte do arsenal imaginário deste pintor apocalíptico.
Mas depois de um certo tempo cansamos. Cabeça pra lá e pra cá, até que abandonamos os quadros e partimos para tentar ver os seus desenhos ‘mágicos’, usados na elaboração de uma pintura ou mesmo um trabalho autônomo para criar uma nova ideia. No tempo de Jeroen Bosch, coruja não simbolizava sabedoria, mas algo mau, muito mau. Em um dos seus desenhos, havia uma coruja embutida na parte oca da árvore. Atrás, um bosque com duas enormes orelhas para lembrar a todos que todo o cuidado era pouco na hora de se falar as coisas, pois o mau estava em toda parte.
Eu experimentei tudo como uma experiência surrealista, de um mundo liliputiano e fantástico deste mestre da pintura da Idade Média. Mas já a minha amiga viu tudo como realmente uma visão de Jeroen Bosch que também descrevia o rumo que o mundo seguia atualmente. Segundo ela, a ganância pelo dinheiro e pelo poder estaria levando a humanidade à bancarrota, tal qual no mundo de Bosch.
Não dando tempo para qualquer contestação, ela continuou: “Nos Estados Unidos, um palhaço, quase candidato à presidência, será o responsável pelo maior arsenal atômico do planeta; na Síria, bombas são jogadas até em hospitais e, com isto, o presidente Putin vai tentando desintegrar a União Europeia, ao provocar a avalanche de refugiados que batem às suas portas”.
Neste instante, os meus pensamentos foram interrompidos pela voz forte e grave do afinador de pianos: “Alô, alô, já terminei, já toquei uma sonata e você continuou em seu sonho de olhos abertos. Tenho que afinar outros pianos”. E ai ele perguntou se estava tudo em ordem. Com um sorriso, eu lhe assegurei que estava tudo bem. Ele partiu e eu fechei a sala do piano, o museu e tomei o rumo de casa pensando em ligar para a tal amiga. Necessitava ouvir a sua voz.   
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças para o Dom Total.

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